No último sábado (14), a Pública lançou seu primeiro livro-reportagem, Amazônia Pública, com um debate aberto na Praça Roosevelt, em São Paulo.
Debaixo da lona montada especialmente para levar a Amazônia à praça pública, em São Paulo, especialistas em Amazônia nas áreas de energia, ambiente, comunicação, além de representantes de movimentos e ONGs que atuam na região debateram os dilemas que vive a região – entre a necessidade de preservação, essencial também para a qualidade de vida da população da região, e a pressão pelo desenvolvimento. Um público de cerca de 100 pessoas compareceu ao debate – e todo mundo que passou por lá recebeu um exemplar do livro Amazônia Pública. O livro reúne três séries de reportagens sobre os impactos de grandes empreendimentos na Floresta Nacional de Carajás e no rio Tapajós, no Pará, e no rio Madeira, em Rondônia. Toda a apuração foi feita em campo por seis repórteres.
Baixe aqui o livro Amazônia Pública.
Antes do debate foram exibidos três vídeos, realizados pelas equipes de reportagem. Depoimentos de pessoas que nasceram ou atuam na Amazônia – como o escritor Milton Hatoum e o cineasta Aurélio Michelis – ambos de Manaus, que falaram sobre sua relação com a cidade e a floresta e expuseram suas expectativas para a região.
Questão energética
O debate começou com a pergunta que se faz desde que os brasileiros tomaram conhecimento da construção da hidrelétrica de Belo Monte – que obteve grande repercussão pelos protestos de ribeirinhos e indígenas do Xingu: Afinal, vale a pena construir hidrelétricas na Amazônia? Quem se beneficia dessa energia não apenas do Xingu, mas do rio Madeira (com as hidrelétricas Jirau e Santo Antônio) e as planejadas no projeto de hidrelétricas do Tapajós, o lindo rio azul de ribeirinhos e mundurukus no Oeste do Pará.
O professor Célio Bermann, do Instituto de Energia e Ambiente da USP (IEE/USP), foi taxativo: “É mentira a necessidade de energia elétrica para o desenvolvimento”, disse, acrescentando que não é a pressão pelo consumo das novas classes médias que está pressionando a demanda. Segundo o professor, 30% da energia gerada no país é consumida inteiramente por seis setores da indústria: a siderurgia, a indústria de metais não ferrosos, de ferro-ligas, petroquímica, papel e celulose e cimento. “Nós estamos vivendo no país uma autocracia energética”, disse, referindo-se à prioridade dada a produção de energia em detrimento da preservação de recursos naturais.
Bermann, que há 20 anos trabalha com questões energéticas na Amazônia, apontou alternativas trazidas em um estudo do IEE/USP, que mostra a possibilidade de suprir a demanda da população brasileira por 10 anos com a construção de 66 usinas eólicas de 30 megawatts de potência, bem mais limpa e menos impactante, do ponto de vista do território, do que as hidrelétricas. Além disso, explicou o professor, essas usinas poderiam se localizar próximas às cidades para evitar a perda de potência no transporte da energia por linhas de transmissão.
“[A usina hidrelétrica de] Belo Monte não está sendo construída para gerar energia elétrica. Está sendo construída porque em cinco anos as empresas que hoje dominam o governo vão embolsar R$ 17 bilhões”, disse, referindo-se ao fato de as empreiteiras serem as grandes beneficiárias das obras e grandes doadoras eleitoras. O professor criticou ainda a ausência de consulta preliminar por parte do governo e das empresas à academia – para discutir a necessidade e a melhor maneira de realizar as obras – e às comunidades tradicionais e indígenas, que embora sejam as mais afetadas ainda não têm seu direito de veto assegurado nas discussões sobre estes megaempreendimentos. “As consequências sociais e ambientais são irreversíveis. Mitigação é um belo nome para dizer nada”, afirmou.
Marcelo Salazar, do Instituto Socioambiental (ISA) de Altamira, onde fica a usina de Belo Monte – para ele, “o maior símbolo de “inadimplência socioambiental” – relatou o que está acontecendo na região, onde vive desde 2007. “O que estou vivenciando em Altamira é um verdadeiro rolo compressor. A pressão social parece não ter força”, disse.
Salazar explicou que além dos impactos às comunidades próximas às obras da hidrelétrica, o empreendimento gera conflitos que reverberam por uma área bem maior do que a da usina, propriamente dita. Ele destacou o aumento de extração ilegal de madeira na região e, do lado urbano, o encarecimento do custo de vida e o alarmante crescimento da violência na cidade. “Uma em cada três pessoas tem um parente ou conhecido que foi assassinado”, revelou.
Salazar também criticou a postura do governo em relação às comunidades indígenas. “O governo não aplica recursos para a Funai e usa a Eletrobrás e a Eletronorte para fazer a política indigenista na região”, disse, referindo-se às compensações financeiras que as empresas devem pagar pelos impactos causados à população indígena e que deveriam ser mediadas pelo órgão encarregado de protegê-la.
Mineração no sul do Pará
Danilo Chammas, advogado da Rede Justiça nos Trilhos, lembrou os impactos que mega empreendimentos causam a comunidades tradicionais e quilombolas. É o caso do projeto de Carajás, da mineradora Vale, no sudeste do Pará e oeste do Maranhão. Segundo ele, “uma pessoa morre por mês atropelada nos trilhos da Estrada de Ferro Carajás”. A ferrovia leva o minério de ferro extraído nas minas em Carajás ao porto de São Luís e daí à exportação, em grande parte direcionada para a China, e está sendo duplicada para escoar o aumento da produção de minério da floresta: a companhia pretende dobrar a extração quando o projeto – em implantação – estiver concluído. A obra tem financiamento do BNDES que liberou a primeira parcela do investimento mesmo quando a obra foi embargada na Justiça pelos movimentos sociais de direitos humanos, CIMI e Fundação Palmares.
Veja aqui o vídeo: Carajás, o maior trem do mundo
De acordo com Chammas, Carajás é uma região em permanente conflito há pelo menos 30 anos – justamente por abrigar o maior empreendimento de minério de ferro do mundo. “Isso dentro de uma floresta nacional. O que é uma contradição”, falou.
“É realmente um negócio da China. O custo da tonelada [de minério de ferro] é de US$ 22 até o porto e dali, US$ 100, sem contar com o custo da transporte”, explicou, reafirmando que o minério de ferro extraído em Carajás é o mais barato do mundo. Chammas destacou que os problemas sociais permanecem sem solução na região, por falta de empenho da companhia Vale e do governo. Também lembrou a atuação agressiva da Vale, que chegou a infiltrar e espionar lideranças dos movimentos sociais que exigem responsabilidade social e ambiental por parte da companhia. “Somos os mais espionados”, disse Danilo.
Como a imprensa cobre a Amazônia
A jornalista Elaize Farias, de Manaus, co-fundadora do portal Amazônia Real, falou sobre a cobertura da Amazônia pela mídia, não raro vista como “exótica” e deslocada do resto do país. “É preciso fazer a conexão da Amazônia com outras regiões. Estados como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro não sabem da relação da Amazônia com outras regiões. Não se sabe, por exemplo, que a madeira extraída ilegalmente vem para os pólos moveleiros de São Paulo e de Minas Gerais ”, destacou.
Nilo D’Ávila, do Greenpeace, que falou das políticas públicas em vigor para a Amazônia, também reforçou a importância de analisar os projetos e políticas para a região levando em conta não apenas o contexto nacional, mas continental da floresta, que se expande pelos territórios do Peru, Equador, Bolívia. O ativista também criticou o debate pouco transparente do Código da Mineiração, colocado para votação em regime de urgência, sem a participação da população, embora fundamental para decidir o futuro dos nossos recursos naturais do ponto de vista econômico, ambiental e social, especialmente por envolver projetos de mineração de em terras indígenas.
Entre pessimistas e otimistas, os debatedores vêem 2014 como um ano decisivo para a reação popular a megaempreendimentos na região. É o ano em que deve sair, por exemplo, a licença de operação para a usina de Belo Monte e a de instalação duas hidrelétricas do Tapajós. Para Marcelo Salazar, do ISA, “precisamos nos inspirar nesses movimentos de ruas e reinventar as formas de manifestação”. E, como observou o professor Célio Bermann, disseminar informação de qualidade para disseminar o debate.
* Publicado originalmente no site Agência Pública.