Para Walter Belik, especulação e irresponsabilidade dos governos neoliberais levou à crise que ainda deve durar vários anos.
O índice da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) que monitora, desde 1990, os preços internacionais de alimentos chegou a um recorde em fevereiro deste ano, alcançando 236 pontos. Em março, ele voltou a cair, após oito meses de altas. A queda foi de 2,3% em relação ao mês anterior, mas o índice ainda está 37% acima do nível de março de 2010.
No mundo do jornalismo atual, uma notícia deste teor pode parecer algo abstrata e sem sentido, mas bilhões de pessoas em todos os continentes têm percebido em sua vida cotidiana, nos últimos anos, os efeitos de uma alta generalizada nos preços da comida.
Aqui e ali, são esboçadas explicações suspeitas, como quebras de safra em determinadas regiões, flutuações do preço do petróleo e até o aquecimento global. Frequentemente, o deus mercado é culpado por essa inflação. Mas, o que realmente está acontecendo? Para entender melhor o fenômeno, procuramos Walter Belik, professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas.
Belik pertence a uma linhagem de intelectuais que não goza de grande prestígio nestes tempos de hegemonia do mercado financeiro. Ele se dedica a pensar a alimentação humana e a ideia de segurança alimentar. A inspiração vem do brasileiro Josué de Castro, a cuja obra faz constante menção o trabalho dele e seus parceiros – gente como José Graziano da Silva, hoje representante regional da FAO para a América Latina. Dez anos atrás, junto com Graziano, Belik coordenou o projeto Fome Zero, adotado como parte do programa de governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Na entrevista a seguir, Belik defende a tese de que não faltam alimentos no mundo – o verdadeiro problema que tem gerado a alta dos preços é, segundo ele, a inação dos governos nacionais, nos últimos anos, que permitiu que se perdesse de vista a necessidade de monitorar preços e manter estoques, a fim de não prejudicar a vida de bilhões.
Desinformémonos – Vivemos uma “crise alimentar mundial”?
Walter Belik – Concordo em termos, porque esta expressão tem sido usada pelos dois lados, temos que tomar um pouco de cuidado. Muita gente quer dizer que há uma crise de oferta, mas não há. O que há é uma crise provocada pela alta dos preços dos alimentos, então isso impacta na demanda, você tem populações que não conseguem consumir em função da alta dos preços dos alimentos.
Você tem várias motivações para puxar essa bandeira da “crise dos alimentos” pelo lado da oferta, que acho que é importante retomar. Essa ideia acabou dando muito combustível para aqueles que levantam uma teoria que é quase um neomalthusianismo, de que existe uma incapacidade do mundo de garantir a oferta de alimentos – por vários fatores, como o crescimento da demanda, por exemplo. Dizem: a China está crescendo 13% ao ano. Enquanto os chineses se subalimentavam, conseguíamos equacionar o problema, mas agora que a China começa a crescer, isso complica. Dizem o mesmo incluindo o Brasil, a Índia, países em desenvolvimento em geral.
Existe uma outra vertente que, junto com os ambientalistas (que, na minha opinião, ingenuamente entram nessa discussão), diz que o problema é com os biocombustíveis, que estão deslocando a produção agrícola e consequentemente fazendo faltar alimento. Neste caso, é uma meia verdade.
Há quem diga, ainda, que estamos precisando de uma nova revolução tecnológica, porque vai faltar alimento, precisamos melhorar a produtividade, porque está caindo, etc. Quem defende essas posições é o pessoal dos transgênicos. Dizem que precisamos de um novo paradigma tecnológico, a transgenia, que não adianta mais seguir nos passos da revolução verde (melhoramento genético, dignificação da agricultura). É uma vertente complicada e é preciso pensar um pouco antes de defender essas coisas.
Então, há várias vertentes que tentam atacar a questão pelo lado da oferta, dizendo que não vai ter alimento. O que está por trás desta ideia? A ideia de que os governos têm que dar mais subsídio, têm que fechar seus mercados, não podem deixar exportar livremente, senão falta alimento, têm que investir mais na agricultura. É um viés fisiocrático, ruralista, de querer mostrar que a agricultura precisa ser mais prestigiada, e isso é muito perigoso.
Não faltam alimentos no mundo
Os preços subiram muito rapidamente em função de outros fatores, que não têm a ver com falta de oferta. Muito pelo contrário, existe uma oferta que vem crescendo de forma bastante constante ao longo do tempo. Inclusive em 2008 (ano em que os preços dos alimentos chegaram a pico histórico, agora novamente atingido), que não foi um ano ruim para a agricultura, houve apenas alguma frustração de safra em alguns países: a seca na Austrália, o problema do açúcar na Índia, o da soja na Argentina, alguns problemas na Rússia, algumas frustrações, mas é absolutamente normal que todo ano algum país do mundo tenha um problema de frustração de safra.
Vemos, então, que não é um problema de falta de oferta. É um problema de que os preços estão sendo puxados por outros fatores, que estão além da produção agrícola. Esta alta dos alimentos está levando a que um grande contingente da população não consiga consumir, e aí nós estamos falando de países que já vinham sofrendo problemas econômicos – países africanos, alguns países da Ásia (Paquistão, Bangladesh, Mianmar), todos bastante complicados do ponto de vista de poder aquisitivo. Então, existe um problema de demanda, que faz com que a gente possa dizer que existe uma crise do alimento, sim.
Então, por que os preços dos alimentos estão subindo?
Visto isso, o que está pressionando a alta dos preços dos alimentos? Em primeiro lugar, um certo nervosismo do mercado em função da crise financeira, principalmente, além de alguns problemas geopolíticos que fazem com que o preço do petróleo continue subindo (aliás, o petróleo hoje está a US$ 105 e está subindo violentamente em função dos conflitos políticos nos países árabes, mas, em 2008, estava a US$ 75,8, já tinha subido no momento anterior).
Há, sobretudo, esse problema da especulação com commodities, que faz com que os alimentos virem ativos. A comida entra na roda financeira como qualquer outro ativo e perde o status de alimento, de uso, passa a ser só um elemento de troca.
Em segundo lugar, o que eu acho mais grave, os países abriram mão de formar estoques reguladores. Antigamente, quando se começava a pressionar muito a alta dos preços, os estoques reguladores entravam para minimizar essa alta, os países lançavam mão dos estoques, colocavam no mercado e seguravam a alta. Então, se é um problema sazonal, de quebra de safra, tudo bem, há estoques reguladores que entram. Agora, os países abriram mão de ter isso.
Por quê? Em função de 15 anos de neoliberalismo. Para que formar estoques reguladores? Do ponto de vista neoliberal, estoques reguladores, em primeiro lugar, são uma forma de intervenção do Estado nos mercados, então o Estado não pode gastar dinheiro comprando produtos agrícolas. Mesmo porque, num cenário de abertura comercial, de queda de barreiras, se o preço aumenta em um país, esse consumidor, esse comprador desse país, pode comprar no país vizinho, uma vez que estamos vivendo uma perspectiva de integração de mercados, de globalização.
Todo esse ideário se mostrou uma bobagem, porque os países não acumularam estoques e, na primeira crise que aconteceu, quem necessitava de alimentos para consumo teve que comprar os alimentos nos países vizinhos a preços de mercado, repassando esse preço para o mercado interno.
Especulação financeira
Tirando essa questão de os países não acumularem estoques, não há nenhum motivo real que justifique uma crise, não existe escassez. Ao contrário do que muitos defendem, de que a crise é porque está faltando alimento, não é isso, não está faltando alimento. Mesmo os países que cresceram rapidamente, como a China, aumentaram sua produção agrícola de uma forma muito grande. Então, estes países estão dando conta da coisa. Aliás, quando você compara a produtividade da agricultura, o rendimento agrícola, e os aumentos de áreas, todos continuam crescendo a taxas superiores ao aumento da população. O que acontece é que os rendimentos (dos trabalhadores) não estão crescendo a taxas cada vez maiores, mas sim a taxas talvez cada vez menores, mas ainda muito acima do crescimento da população.
O milho
O México abdicou de ter uma soberania alimentar em nível nacional. No momento em que foi feito o Nafta, o México, que não tinha competitividade para produzir milho e não tinha capacidade para atender a toda a população, acabou abrindo as fronteiras de uma forma totalmente indiscriminada para o milho norte-americano. O que aconteceu com a questão do biocombustível? Só o anúncio de Bush de que iria multiplicar por quatro ou cinco a produção de etanol de milho para mistura na gasolina já provocou uma alta enorme no preço do milho no México – porque com esta integração de mercado você cria um sistema de vasos comunicantes.
E, quando a crise estourou, não só o México deixou de receber milho, como uma parte da produção mexicana foi desviada para atender à demanda norte-americana. E aí se comenta muito sobre o fato de que basicamente o milho utilizado para ração e para produção de etanol seria o milho amarelo, e o milho para tortilha seria o milho branco. Esse milho branco, um produto absolutamente alimentar, cujos rendimentos industriais são baixos, começou a ser utilizado para produção de etanol e para especulação. É um exemplo acabado dessa situação de falta de estoques reguladores, falta de um padrão de intervenções mais consistentes que garantam a alimentação da população. Não aconteceu só com o México, foi com a Guatemala, Honduras, vários países da América Central.
Revoltas árabes
Sim, há o aumento de preços da comida, a inflação é um componente importante na insatisfação popular, mas a coisa começou a se manifestar muito mais em função da crise financeira, que fez crescer o endividamento desses países, provocando corte de gastos públicos, desemprego. Agora, nessas situações desses países, o suprimento de alimentos começa a ficar complicado. Isto acontece em todo momento de agitação social, o preço do alimento sobe.
O futuro
Todo mundo concorda que esta crise não é passageira, é uma crise que vai perdurar durante mais alguns anos. Há uma tendência de altas dos preços dos alimentos que, ainda estão muito colados à questão das outras commodities. Acho que vamos ter de conviver com isso ao longo dos próximos anos. De certa forma, o alimento ainda é barato, houve um barateamento generalizado dos alimentos. Isto talvez comece a reverter. Talvez o alimento, como um bem necessário para a saúde da população, comece a ser um pouco mais valorizado.
É curioso, por exemplo, que agora na reunião do G20, Sarkozy propôs um maior controle no preço dos alimentos, inclusive (com formação de) estoques. Houve uma grita generalizada. É uma posição correta. O mundo todo, quando acabou a Segunda Guerra Mundial, viveu uma crise de alimentos, porque essa guerra abalou a economia de uma forma muito profunda, a Europa ficou arrasada, não tinha como produzir alimento, e os Estados Unidos estavam vindo de um esforço de guerra. Então, foi proposto um controle mundial sobre os alimentos, pelo qual haveria um banco mundial de alimentos, países seriam financiados para produzir, haveria uma série de medidas de incentivo aos países para que houvesse um equilíbrio no seu consumo e oferta. Isso não foi aprovado.
Hoje, o que se está propondo é um pouco isso: ora, por que não se resolve o problema dos países africanos, por exemplo, que são importadores líquidos de alimentos? Por que não se investe pesadamente na oferta de alimentos desses países? No G20, agora, não há um consenso sobre isso, nem vai haver. A posição do Brasil, por exemplo, é um pouco a do ministro da Agricultura (oriundo da direita ruralista), que outro dia, em uma entrevista, disse: “Agora que o preço dos alimentos está bom, que o agricultor está se dando bem, os países ricos querem controlar o preço, que história é essa?” Então, não há consenso e nem vai haver no curto prazo.
Enquanto não se resolver esse tipo de coisa, a crise vai durar. Vai durar enquanto não houver um programa de recuperação desses países pobres, para que possam produzir, enquanto não houver um programa mundial de estoque, uma espécie de banco de alimentos de estoques reguladores, que venham a satisfazer as demandas alimentares da população. O Programa Mundial de Alimentos da ONU tenta fazer isso, mas com doações de excedentes – ou seja, é algo extremamente tímido e depende da caridade dos Estados Unidos e de outros países ricos. Então, é preciso uma institucionalidade internacional que possa dar conta disso tudo.
Só que os países não conseguem chegar num consenso, assim como não conseguiram chegar com relação à crise financeira internacional. No caso dos alimentos é ainda mais complicado, porque alimento envolve países pobres, que não têm força política.
Combate à pobreza x segurança alimentar
O Fome Zero tem uma proposta bastante abrangente de resolver o problema da segurança alimentar (inclui itens como merenda escolar, apoio à agricultura familiar, etc.), e o governo Lula avançou bastante no combate à pobreza, via transferência de renda, que era uma linha de menor resistência. Avançou-se bastante no programa Bolsa Família, que cobre 12 milhões de famílias abaixo da linha da pobreza. A pobreza tem uma aderência com a questão da segurança alimentar, mas não são a mesma coisa. O problema de insegurança alimentar extrapola a pobreza, mesmo porque a segurança alimentar pressupõe uma estabilidade. O programa Bolsa Família visa a amenizar as condições de pobreza das pessoas, mas ele está agora em um processo de rediscussão, no sentido de garantir que se possa permitir a superação da pobreza, não apenas amenizá-la.
Quando o dinheiro vira problema
A gente está questionando bastante esse padrão alimentar que está se estabelecendo a partir do Bolsa Família. Várias pesquisas do governo mostram que os beneficiários gastam entre 70% e 80% da renda com alimento – muito bem, mas vamos ver que alimentos que estão sendo consumidos, em muitos casos é alimento não saudável, alimento industrializado. Muitos dizem: “Eles também têm direito a tomar coca-cola”. Tudo bem, eles têm direito, mas não é função do Estado transferir renda para que eles tomem coca-cola.
Fazer transferência de renda para uma comunidade indígena, por exemplo, pode ser uma violência. Eu lembro quando começamos a trabalhar com o Programa Fome Zero, estive em algumas áreas indígenas, e se criticava muito o programa de cesta básica, que existia antigamente, quando a cesta básica era dada às famílias indígenas e não tinha nada a ver com a alimentação daquela família. Aprendemos com essas experiências, isso já não se faz mais, mas por outro lado ainda estamos no começo de poder trabalhar melhor um programa alimentar para essas famílias. Todos os programas alimentares teriam que ter esse componente da produção local, da pesca, e como você vai incentivar? Tem uma série de questões que vão ter que ser tratadas e equacionadas caso a caso.
* Publicado originalmente no Desinformémonos e retirado do site Brasil de Fato.