Perplexidade. Esta é a palavra que os cientistas encontraram para resumir a sensação diante da maior investida contra a conservação da natureza nas últimas três décadas. No período, 93 parques nacionais e outras unidades de conservação tiveram suas fronteiras reduzidas ou suas categorias alteradas. Na prática, o que se fez foi retirar ou reduzir a proteção de 5,2 milhões de hectares de florestas nativas antes preservadas em parques, reservas, estações ecológicas. Isso equivale ao território do Rio Grande do Norte e é superior ao da Costa Rica.
Em termos de extensão, as maiores perdas (74% do total) ocorreram entre 2008 e 2012, em unidades de conservação na Amazônia. Os principais motivos foram o avanço desregrado da geração e transmissão de energia hidrelétrica, do agronegócio e da urbanização. As constatações são de um estudo que acaba de ser publicado na Conservation Biology, uma das mais respeitadas publicações científicas do mundo.
O estudo identificou que os eventos ocorreram em 16 estados, sendo 69 em áreas de proteção integral (parques e reservas biológicas) e 24 em unidades de uso sustentável, onde vivem populações tradicionais, por exemplo. A análise aponta três momentos distintos em relação aos limites das reservas ambientais: até 2000, poucas áreas foram afetadas; em 2001 houve um pico de reclassificações – a maioria positivas – para adequação ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação; e de 2007 para cá.
O que mais chamou a atenção dos pesquisadores, liderados pelo biólogo Enrico Bernard, do Laboratório de Ciência Aplicada à Conservação da Biodiversidade da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi justamente o período de 2008 a 2012, que registrou 74% de todas as alterações. Somente em 2011, foram 37 eventos. A maioria na Amazônia. Unidades de conservação federais e estaduais foram alvo de mudanças e algumas, mais de uma vez. Em Rondônia, o Parque Estadual Guajará-Mirim foi reduzido em duas ocasiões (1996 e 2002), e o Parque Estadual Corumbiara, reduzido a primeira vez em 1996 e revogado em 2010, ou seja, a unidade perdeu completamente a função de área protegida.
Luz amarela – Ao cruzar as informações, os pesquisadores notaram que as alterações nas unidades se intensificaram a partir da publicação, em 2007, da Matriz Energética Brasileira – 2030. O documento oficial diz que para o Brasil atender à demanda de 4,5% de mais oferta energia elétrica anual até 2030, todos os grandes rios da Amazônia devem ser barrados para a construção de hidrelétricas. Em 2008, começou o movimento pela diminuição do tamanho de algumas unidades de conservação na Região Norte para a prospecção de potencial hidrelétrico. Parques nacionais e reservas extrativistas estavam na mira.
“Mas isso bate de frente com a lei do SNUC. Então o governo federal promulgou o Decreto 7154/2010, dizendo que, em caso de interesse público, todas as unidades de conservação poderiam ser prospectadas”, lembrou Bernard, da UFPE.
E foi isso o que começou a ser feito de maneira sistemática, conforme demonstra a pesquisa. De 2010 a 2012, um total de 21 unidades de conservação tiveram suas fronteiras afetadas na Amazônia para acomodar empreendimentos de geração ou de transmissão de energia. A pesquisa estudou alterações apenas nas unidades de conservação. Se as terras indígenas e quilombolas fossem incluídas, a conta seria ainda maior.
“Tal decreto federal não apenas desconsiderou estudos e argumentos técnicos que levaram ao estabelecimento dessas áreas protegidas, como considerou que a construção de hidrelétricas sem as devidas considerações espaciais é mais importante que a conservação do patrimônio natural, para essa e as futuras gerações de brasileiros”, lembrou Angela Kuczach, secretária-executiva da Rede Pró-Unidades de Conservação.
“Tais fatos demonstram claramente a necessidade de aprimorarmos as ferramentas de planejamento em nível nacional. Não podemos mais seguir observando os vetores de desenvolvimento de forma isolada e sem cruzar informações sobre unidades de conservação, terras indígenas e áreas prioritárias para conservação, por exemplo. Com essas medidas traremos, inclusive, maior segurança jurídica e redução de tempo e custos à implantação de infraestrutura”, ressaltou Jean Timmers, superintendente de Políticas Públicas do WWF-Brasil.
Tiro no pé – “A maioria dos grandes rios brasileiros nasce dentro de unidades de conservação e já se sabe que as florestas que elas abrigam são em parte responsáveis pelo volume de água das chuvas. Se o regime hidrológico for alterado, o funcionamento das hidrelétricas ficará comprometido. É um tiro no pé”, adverte o chefe da pesquisa.
O estudo destaca ainda os serviços ambientais providos pelas unidades de conservação e seu potencial econômico. Estima-se que a criação e manutenção dessas unidades no Brasil sequestra cerca de 2,8 bilhões de toneladas de carbono anualmente, ajudando a reduzir o efeito estufa. Os parques nacionais têm potencial para receber 20 milhões de visitantes por ano, o que pode gerar um impacto positivo de U$ 1,1 bilhão na economia nacional.
“Diversos países transformaram estes espaços em polos dinamizadores de economias, gerando experiências turísticas, emprego e renda aliados à conservação da biodiversidade. O Brasil, segundo pesquisa de competitividade turística do Fórum Econômico Mundial de Davos, é o número um do mundo em belezas cênicas e recursos naturais. Portanto, temos a oportunidade ímpar de gerar riquezas a partir destas áreas protegidas, se houver vontade política”, ressaltou Ana Luisa Da Riva, diretora executiva do Instituto Semeia.
Em termos mundiais, o estudo A Economia dos Ecossistemas e Biodiversidade (Nações Unidas) aponta o valor econômico dos serviços oferecidos por plantas, animais, florestas e ecossistemas, entre outros, assim como os custos ocasionados pela perda desses recursos. Conforme o estudo, o custo anual da perda da biodiversidade fica entre US$ 2 trilhões e US$ 4,5 trilhões (R$ 3,6 trilhões e R$ 8,2 trilhões). Mesmo assim, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação está sob forte ameaça.
E se depender do Congresso Nacional, alerta o estudo, o país poderá perder ainda mais áreas protegidas nos próximos anos. Projetos de lei em tramitação na Câmara e no Senado querem alterar, somente na Amazônia, a Reserva Extrativista Rio Ouro Preto (Rondônia), a Floresta Nacional do Jamanxim, a Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo, Estação Ecológica Terra do Meio e Parque Nacional do Pardo (Pará). As áreas do Pará, ressalta o autor da pesquisa, foram criadas após o assassinato da missionária Dorothy Stang, em 2005. Juntas, as áreas na mira dos parlamentares somam 2,1 milhões de hectares que podem sumir do sistema.
“Relaxar o status de proteção das unidades de conservação no Brasil tem se mostrado politicamente muito fácil. Em nenhum dos casos recentes foram feitos estudos técnicos e nem consulta pública”, espanta-se Bernard. Ele ressalta que, nos estados, a situação é ainda mais frágil quando comparada às áreas protegidas federais.
“As áreas protegidas oferecem serviços ambientais como conservação da biodiversidade, manutenção do regime hídrico, mitigação das mudanças climáticas e bem estar para a humanidade. Enfraquecer as unidades de conservação compromete severamente a capacidade dessas áreas em oferecer esses recursos. Por isso o Brasil deveria estar aumentando suas áreas protegidas. Mas está fazendo o contrário, e diante dos olhos do mundo inteiro”, advertiu Bernard.
* Publicado originalmente no site WWF Brasil.