Adiamento da votação do Código Florestal podia ser usado para entender APPs

O adiamento da votação da proposta de mudança no Código Florestal pode trazer benefícios, se esse curto tempo for bem usado.

Se for usado para negociações pontuais, desvinculadas de fundamentação técnica, o país ganhará pouco. Se as lideranças ouvirem argumentos técnicos, das próprias agências do governo que apóiam, verão a diferença entre soluções amadorísticas e soluções profissionais.

Um dos pontos de intransigência do relator – que ainda precisa provar ter de fato transigido em algum ponto para valer – diz respeito às APPs, matas ciliares e cobertura vegetal dos topos de morros e encostas íngremes. Falando assim, parece que se está apenas querendo aumentar a quantidade de vegetação, em detrimento da área produtiva. Não é isso. Recompor a vegetação nativa, sem usar exóticas (isto é, espécies que não são nativas do local), proteger encostas e topos de morro tem a ver com a quantidade e qualidade da água. O desmatamento torna as nascentes mais vulneráveis, diminui o volume de água, permite o assoreamento e a poluição dos rios. Em outras palavras, estamos falando em ter água abundante e boa. Fator essencial para a própria agricultura.

Deputados deviam chamar a Agência Nacional de Águas, por exemplo, que tem obrigação de cuidar de nossas águas, para perguntar-lhe se as APPs têm mesmo importância e pedir-lhe mostrar o que precisaria ser incluído no código para proteger as águas. Ouviriam que é preciso manter e proteger as APPs e adotar novas medidas de proteção às áreas de recarga, de reposição das águas dos aquíferos.

Em nota técnica recente, os técnicos da ANA dizem o seguinte sobre isto:

“As zonas ripárias,(…) que incluem as áreas permanentemente saturadas das cabeceiras e das margens dos cursos de água, ocupam as partes mais dinâmicas da paisagem, tanto em termos hidrológicos, como ecológicos e geomorfológicos. Elas estão intimamente ligadas aos cursos de água e participam de processos vitais para a manutenção da saúde da sub-bacia e, conseqüentemente, dos recursos hídricos, que dizem respeito à geração do escoamento direto nas sub-bacias em decorrência das chuvas.

Como os benefícios [dessas zonas ripárias] são imprescindíveis para a manutenção dos recursos hídricos; e mesmo verificada a ausência de estudos técnicos que embasem as demais delimitações das APP’s, superiores à largura mínima, é recomendável que seja observado o princípio da precaução, mantendo-se, nas condições atuais, o respeito às exigências estabelecidas no Código Florestal. Não se admitindo em nenhuma hipótese a adoção de faixas ciliares inferiores a 30 m.”

Traduzindo: a vegetação natural nas margens dos cursos de água é fundamental para termos água em quantidade e com qualidade e requerem o máximo de precaução. Não se deveria admitir, sob qualquer hipótese, áreas de matas ciliares (vegetação nas margens) inferiores a 30 metros.

Sobre os aquíferos, que estão sofrendo tremendamente com a ação humana incontida, a nota técnica diz:

“Com relação às áreas de recarga dos aquiferos, destacamos a necessidade de aprimoramento na forma de aplicação do Código do ponto de vista dos recursos hídricos, qual seja, dar uma ênfase maior a proteção dessas áreas de recarga, dando a elas tratamento similar ao dispensado hoje às áreas de proteção de nascentes.”

A nota conclui com recomendações singelas que, se adotadas pelos parlamentares, fariam grande bem ao país e à agricultura brasileira:

“Em síntese:

O Código Florestal Brasileiro, do ponto de vista de recursos hídricos, não necessita de alterações em relação às exigências estabelecidas, notadamente no que tange a largura mínima de 30 m;

É necessário aprimorar a forma de aplicação do Código dando ênfase maior a proteção das áreas de recarga dos aquiferos;

A assistência técnica precisa ser fortalecida para que o setor possa contar com técnicos capacitados em número suficiente ao atendimento de sua demanda.”

Essa assistência ajudaria os produtores a entenderem o papel que eles próprios têm no que acontece com suas águas. A discussão tem sido feita, sobretudo pelos ruralistas e pelo relator, como se soubessem o que é melhor para a agricultura brasileira. Pode não ser o caso. Pessoalmente estou convencido que não é este o caso. Eles, relator e ruralistas, têm visão curta, olhando apenas o tempo presente. Se adotassem visão de longo prazo veriam que o futuro da própria agricultura depende da preservação das APPs. Não é capricho ambientalista. É medida prática de proteção e precaução.

Sobre o conflito entre o interesse de curto prazo do agricultor e o de longo prazo, há várias histórias exemplares.

Uma delas, é a do fotógrafo Sebastião Salgado, que herdou uma fazenda cheia de pastos e desmatada. O rio que nela nascia, cortava suas terras e desaguava no rio Doce, havia secado. Ele resolveu recompor a Mata Atlântica. Plantou mais de um milhão de árvores. Quando fui lá visitar Sebastião e Lélia, ele me mostrou que o rio já corria novamente. E as árvores estavam ainda em crescimento.

Outra história presenciei em visita ao parque Grande Sertão Veredas, ameaçadíssimo pela cobiça de agricultores que vêem nele as riquezas que suas terras não tem. Não porque fossem terras mais pobres que o cerrado do parque. Eram iguais. Mas o desmatamento e a superexploração as fizeram pobres. Um dos casos é muito ilustrativo. Escrevi várias matérias para O Eco sobre essa visita, uma sobre a “chapada da soja”. Fiz um áudio slide show que republiquei aqui neste espaço.

Zerei o odômetro do jipe no primeiro mourão da fazenda. No último mourão, ele indicava 15 quilômetros de frente. Tudo plantado de verdejante soja. Ao fundo, lá no horizonte perdido da fazenda imensa, uma fileira de luzidias colhetadeiras esperava para entrar em campo. Não se via uma só árvore, nem um bosquezinho de árvores do cerrado. Esse proprietário viu o rio que nascia e corria por suas terras secar. Passou a tirar água do subsolo para irrigar sua soja. Naquele momento, a água já beirava o insuficiente. Estava acabando. Ele, contudo, não admitia que isso tinha a ver com o desmatamento que ele mesmo promoveu, com a destruição da vegetação ripária, o aterramento de veredas. Achava que era fenômeno natural. Faz parte daqueles que querem que o parque seja aberto, para que possam usar suas águas. Se conseguirem, aquilo tudo vira deserto. As veredas de 40 quilômetros que atravessei, com rios límpidos, sucuris, onças, uma imensidade de mamíferos e aves, desaparecerão. É tudo valor, tudo riqueza que vai sendo destruída. Como a riqueza que esse fazendeiro destruiu e agora ameaça sua cultura, da qual tem tirado renda e riqueza.

Existe uma solução simples para salvar esse produtor. Recompor as APPs, vai regenerar suas fontes de água. Ele pode, perfeitamente, abrir mão de alguns metros quadrados dos numerosos quilômetros quadrados que tem plantado. Vai ficar mais rico. Gastará menos com energia para puxar a água. Terá capacidade de produção sustentada por muitos anos mais. No ritmo que vai. Sua terra só perderá valor, sua produtividade vai cair. Sua fazenda vai virar cerrado agreste.

PS Antes que os agrônomos me castiguem, sei que não existe cerrado agreste, é apenas uma figura de linguagem. Sou nascido vizinho de Guimarães Rosa.

PPS Para ser transparente: sou apaixonado por rios.

* Para ouvir o comentário do autor na rádio CBN clique aqui,

** Publicado originalemnte no site Ecopolítica.