Num dos países mais secos do mundo, a busca pela água nos ecossistemas da savana e do deserto é a garantia da vida –
Por Hélio Rocha, especial para Plurale –
Como recuperar o ecossistema de um país pobre, onde é escassa a provisão de água, e por décadas populações foram segregadas e passaram fome? A preservação da biodiversidade africana, empreendida por diversas entidades de todo o mundo, encontra na realidade social e na severidade do clima do continente alguns de seus principais obstáculos. E um desses principais desafios está na conservação dos recursos hídricos e naturais da savana e do deserto, biomas que dominam amplos territórios no Sul do continente.
Sempre tive interesse pela África e por colaborar, de alguma forma, com a conservação daquele que cresci vendo ser nomeado, na TV, como “continente perdido”. Por isso, aceitei o desafio de dar aulas para crianças numa escolinha destinada à tribo bushman, numa entidade chamada Naankusé, na Namíbia. Acabei inserido num contexto de luta pela preservação de todo um modelo de vida diferente do ocidental.
A vida na Namíbia depende de um valor inestimável, a água, e a recuperação das tribos e dos ecossistemas onde elas vivem, depredados por anos de colonização branca, depende da manutenção dos recursos hídricos.
A integração com a vida animal
Naankusé tem por princípio conservar fauna, flora e populações tribais. Das unidades dispersas pelo país, trabalhei em duas: Naankusé, a unidade principal e a primeira da organização, e Kanaan, situada no deserto de Namib, ao Sul, que dá nome ao país. Ambos os locais têm algo em comum: a baixa disponibilidade de água.
A entidade mantém dezenas de espécies em seus territórios. Dos pequenos a animais de médio e grande porte, como oryx, kudus, babuínos e predadores como chitas e leopardos. A maior parte dos animais transita livremente nos limites da reserva, onde estão seguros. Alguns, no entanto, ainda não estão recuperados para a vida selvagem e ficam nos limites da sede da fundação, onde são cuidados por biólogos, nativos da tribo bushman e voluntários.
Cheguei para trabalhar na escola que a entidade mantém para as tribos. Minha proposta era trabalhar com crianças, ajudá-las a estudar, dar uma pequena contribuição ao desenvolvimento de um país. No entanto, a surpresa que os próprios pequenos lhe revelam, quando se chega para ajudá-los, é de que a cultura ocidental será apenas uma opção, junto ao conhecimento que eles já carregam dentro de si: a relação das crianças com a natureza, as histórias de seu povo e seu país, a luta por décadas pela soberania numa terra árida.
“Muito sangue foi deixado nesse país pelos colonizadores, mas hoje somos um país livre. Somos pobres, mas somos livres”, disse-me a professora Hylma.
De fato, muitas mortes marcam a história da Namíbia. Na verdade, um genocídio, no início do século XX, quando o chefe Hendrik Witbooi, do povo nama, uniu seus pares para combater a dominação alemã que perdurava desde o século XIX. Massacrados pelo poderio bélico alemão, os povos nama e herero foram desimados. Deixaram, porém, ao país o mito fundador da resistência ante os colonizadores, até a independência, em 1990.
Desta forma, duas semanas se passaram naquela escola. Matemática, inglês, religião, tudo era ministrado pela professora, com a minha ajuda diária, em inglês. Os meninos falam, ainda, africâner e o idioma bushman. Daqueles dias, destacou-se o quanto cada criança, mesmo aos cinco anos, conhece sobre babuínos, zebras, chitas, kudus. Alguns têm medo de um bicho, outros se sentem íntimos do mesmo, e assim todas convivem com as criaturas da savana como se fizessem parte de um todo: o grande ecossistema africano.
E a certeza da escassez da água neste ecossistema eu teria em minha terceira semana, quando fui convidado a trabalhar em Kanaan, uma reserva recém-fundada, que estava sendo recuperada para receber a vida selvagem e as tribos nômades. Lá, antes uma fazenda, as espécies tinham sido extintas pelos caçadores, e restava aos biólogos e voluntários mapear a área para trazê-las de volta.
A busca pelas “árvores da vida”
Seis horas de viagem numa velha Toyota Outlander 1987, cruzando, inicialmente, a savana africana, que em seguida dá lugar, gradativamente, às dunas e descampados do deserto de Namib, encerrados ao longe por escarpas e montanhas. Assim fizemos o caminho até Kanaan. Eu, Karl, o biólogo responsável, mais três voluntários, apenas.
Embora destruída em sua vida natural pela caça predatória, a fazenda de Kanaan é o que se pode chamar de santuário. Plano, vazio, apenas com as montanhas ao fundo e uma imensa estepe amarelada. Outrora um local habitado por todos os tipos de manadas e predadores do Sul africano, hoje Kanaan é praticamente desabitada. Mas cabe à instituição recuperar o território, e nossa missão era encontrar os pontos por onde passam os animais.
A busca, como nos informou Karl, “parte da identificação de locais onde haja poços de água, muitos deles já estabelecidos pelos antigos fazendeiros, mas destruídos pelos anos de abandono”. No vasto deserto de Namib, a vida depende desses pontos onde há água, que justificam a existência das inúmeras espécies de animais de médio e grande porte numa área dominada pela vegetação seca e rasteira. E a maioria dos poços, como nos explicou o biólogo, estava próxima a árvores centenárias capazes de conservar, no subsolo, água que fora depositada ali pelas chuvas, décadas atrás.
A principal delas era o Camelthorn, ou “árvore da vida”, uma impactante figura de tronco seco e galhos retorcidos, que é apontada pelos nativos como a grande guardiã da vida no deserto. Junto a elas há poços, perto de onde poderíamos instalar as câmeras com sensores de calor. Foram horas de caminhadas para encontrar estes locais na fazenda, instalar as câmeras, marcar o ponto no GPS e voltar, aguardando alguns dias para saber o que a câmera flagrou.
Foram encontrados animais que, à noite, se aproximaram para beber água. Oryx, gazelas e hienas passaram por ali. “As hienas e as chitas são predadores naturais deste ecossistema, embora ainda sejam raros por aqui, que hoje é apenas um ponto de passagem para grandes manadas”, nos explicou o biólogo.
Um passo, no imenso trabalho de se recuperar a vasta área degradada pela caça predatória. Ao fim de uma semana e com o retorno a reserva principal, uma certeza: no clima seco do deserto, a água torna-se ainda mais o sustento da vida.
O retorno e a nova compreensão
A volta à reserva principal permite compreender o quanto a escassez de água é a principal dificuldade para se dar qualidade de vida às populações do continente. Mais alguns dias dando aula para as crianças e, certa vez, fui conhecer o lugar onde elas viviam. Casas de estrutura simples, intercaladas por caminhos de chão e varais que se entrecruzam interminavelmente com as roupas coloridas dos africanos, formando uma festa de cores.
Contundo, a água é pouca, e preciosa, o que se percebe nas mulheres que enchem balde numa torneira coletiva, no esgoto que sai pelos fundos das casas e passa por onde as crianças, inocentemente, brincam umas com as outras. A emergência da qualidade de vida na Namíbia ainda é dependente da criação de estruturas para o provimento de água, algo que o Estado e as organizações que lá atuam ainda são incapazes de garantir com qualidade.
A volta ao Brasil se deu na consciência de que a água é um de nossos bens inestimáveis, um dos alicerces do nosso futuro com qualidade de vida para todos. (Plurale/ #Envolverde)
* Hélio Rocha é editor do Portal Pautando Minas.
** Publicado originalmente na edição 46 de Plurale.