Para o Brasil as negociações globais sobre temas ambientais são absolutamente estratégicas. Prova disso foi a presença da então chefe da Casa Civil e virtual candidata à Presidência da República, Dilma Roussef, à frente da delegação de diplomatas e cientistas brasileiros que estiveram na COP 15, em Copenhague, em 2009, durante um dos mais importantes encontros da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre mudanças climáticas desde a conferência de Kyoto, em 1997. Dilma agora é presidente e o Brasil recebe os holofotes das preocupações ambientais globais. Do ponto de vista interno, esgrime com o agronegócio pelo fim do desmatamento ilegal, não apenas da Amazônia, mas de todos os biomas que compõem o Brasil.
Em relação ao mundo, o país será o anfitrião e ocupará a presidência da Rio+20, que marca os vinte anos da Rio 92. Esta será a mais importante conferência ambiental da ONU desde a Cúpula da Terra, que parou o Rio de Janeiro em 1992, em pleno ocaso do governo Collor. Os momentos são distintos e os líderes também. Dilma está no auge de sua popularidade e pode levar o Brasil a uma liderança ambiental efetiva frente a um mundo ainda descrente de sua capacidade de se renovar econômica, social e ambientalmente. Collor estava em fim de linha, prestes a ser apeado do Planalto e mais preocupado com a própria pele do que com os destinos do mundo.
A Rio+20, nas palavras do economista Ignacy Sachs, pode ser a última grande oportunidade de mudar o modelo global de desenvolvimento, ainda baseado na exploração ilimitada de recursos naturais finitos, antes que os ecossistemas percam definitivamente sua capacidade de resiliência ou recuperação.
O responsável pela diplomacia ambiental brasileira é o embaixador Luiz Alberto Figueiredo Machado, encarregado de toda sorte de acordos nas áreas de mudanças climáticas, meio ambiente, energia, ciência e tecnologia, uma agenda cheia. Diplomata de carreira, é subsecretário-geral do Itamaraty e tem como missão organizar a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20.
Marcada para junho de 2012, essa Conferência encontra um mundo diferente. O Brasil pleiteia a liderança no debate sobre a economia verde, com combate à pobreza e inclusão social. Se depender do Itamaraty, a neutralidade será a receita para o país assumir o papel de articulador dos necessários consensos para a tomada de decisões nas grandes reuniões da ONU. Deve entrar em jogo a matriz energética limpa do Brasil, seu patrimônio natural e a capacidade de superar divergências internas, como sinal de que o país não esconde seus erros, mas fez a lição de casa. Seu papel inclui ainda a análise dos cenários e a articulação dos acordos que devem emergir dessa reunião.
A transição para uma economia verde, no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza, é o primeiro tema central da Conferência. O segundo é a definição de um quadro institucional planetário para o meio ambiente. Figueiredo se esquiva de polêmicas. O diretor de meio ambiente do Itamaraty espera que o evento leve ao aperfeiçoamento da prática do desenvolvimento sustentável. Seu trabalho é de bastidor, de preferência. O embaixador conversou com Carta Verde no edifício da chancelaria brasileira, em Brasília. A seguir, os melhores trechos da conversa.
A Rio + 20 pode ser um divisor de águas ou apenas palco para novas promessas. O que o Brasil tem a negociar?
A Conferência é plural no sentido em que abarca os aspectos sociais e ambientais do desenvolvimento. O capital de um negociador é a credibilidade. O Brasil negocia com extrema lealdade e é visto pelos parceiros como um país dotado de credibilidade internacional. Temos a consciência sobre até onde podemos ir. Ninguém pode ser inflexível. Temos que saber ceder quando necessário e ser absolutamente firmes, quando preciso. Agora que somos a presidência da Rio+20, é momento de termos grande flexibilidade, de ouvir muito, não só os outros países, como também a sociedade civil. O consenso no Rio será dessa forma. Nossa única inflexibilidade é conceitual: queremos um êxito, que a Conferência seja um marco no caminho do desenvolvimento sustentável. Não precisamos de novos conceitos, novos textos legais, o que precisamos é realizar a promessa do Rio em 1992, o desenvolvimento sustentável.
Como o Itamaraty se articula para garantir a presença de chefes de Estado?
O tema da sustentabilidade é tão forte nas sociedades que os governos não podem ficar alheios. Em Copenhague estiveram mais de cem chefes de Estado porque era impossível não estar lá. A economia verde, um dos temas da Rio+20, é uma questão ampla do futuro, do desenvolvimento global. Os países querem que haja um entendimento internacional sobre a governança ambiental. Alguns defendem que se estabeleça em 2012 um mapa do caminho, com os passos para a transição até uma economia verde. Existe a ideia de que a Conferência estabeleça metas de desenvolvimento sustentável. Há várias maneiras de se apontar rumos sobre o que temos que fazer nos próximos 20 anos. Esta é a função nossa, de síntese, e de ordenar o debate. O trabalho é intenso.
Como o Brasil se prepara para repercutir questões práticas de ordem interna na área social e ambiental?
As coisas não se resolvem do dia para a noite. No Brasil, especialmente, tem havido progresso nos três campos, econômico, social e ambiental. Avançamos muito e temos condições para continuar. É como vemos a Rio+20: ela não resolverá tudo, mas apontará os caminhos que devemos seguir, coletivamente, nos próximos 20 anos. A Rio+20 é uma vitrine de várias formas. Será um evento global no Rio de Janeiro em 2012, antes dos eventos de 2014 (Copa do Mundo) e de 2016 (Olimpíadas). Todos os olhares vão estar sobre nós. Todos estão fazendo o dever de casa, nós também, e não temos do que nos envergonhar. Esses últimos anos são prova disso. A visão da Rio+20 é de desenvolvimento coletivo. O crescimento global tem que ser feito de uma forma que eleve o bem-estar das populações, gerando emprego, renda. É, necessariamente, um desenvolvimento amigável com o meio ambiente.
Parte do movimento social se queixa da ausência de interlocução com o governo.
O parlamento já criou uma subcomissão de acompanhamento da Rio+20 no Senado. A sociedade civil já se articula, o empresariado também. Temos ainda um ano para pegar toda essa articulação e colocá-la debaixo de um guarda-chuva. A criação de uma comissão nacional está passando por vários crivos dentro do governo, inclusive do setor jurídico. Tivemos que consultar todos os Ministérios para ver quem estava interessado em participar. Há um processo interno, que tem o seu tempo.
Foi preciso a pressão internacional para o Brasil criar legislação de combate à violência contra a mulher (Lei Maria da Penha). Este tipo de interferência está na pauta ambiental?
Algumas ideias ventiladas passam por uma capacidade de ingerência externa. Alguns pensam na criação de um Conselho de Desenvolvimento Sustentável quase nos moldes do Conselho de Segurança da ONU, com capacidade de impor sanções e fiscalizar. Não é uma vertente majoritária, mas tem alguns defensores. Alguns países, como a Bolívia por exemplo, defendem a criação de um tribunal internacional com poder de passar sentenças sobre a atuação dos países no combate às mudanças climáticas. O sistema internacional tem várias maneiras de se organizar. Na área dos direitos humanos, a fiscalização é grande. A punição maior é um país ser apontado como violador sistemático dos direitos humanos. Não é o que prevalece na área de desenvolvimento sustentável, vista muito mais sob o prisma da cooperação. Na Rio 92, parte importante do que foi acordado era que os países industrializados deveriam colocar à disposição dos outros países tecnologias e recursos para a proteção do meio ambiente, e isto não aconteceu.
Este é um ponto importante: em movimentos voluntários, como o Pacto Global da ONU e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, compromissos não foram cumpridos e recursos não foram transferidos.
Este é um gargalo para o cumprimento das obrigações no âmbito das convenções na área de desenvolvimento sustentável, como a de clima, de biodiversidade, desertificação e várias outras. A imposição da obrigação de financiar também não deu certo. Vários países olham para possibilidades novas de financiamento. Na área do clima, há uma ideia de cobrar uma taxa sobre passagens aéreas, para que países em desenvolvimento façam obras de adaptação à mudança do clima. Outros pensam em taxa sobre transações financeiras internacionais. Diante da dificuldade de se impor uma contribuição compulsória, há ideias de se criar mecanismos inovadores que talvez possam aportar recursos de maneira mais indolor. Este é um gargalo sério para a implementação de tudo o que diz respeito à área ambiental. É normal ouvir nas conversas com países em desenvolvimento: “Não aceito obrigações se eu não tiver os meios para executar”. Sabe-se hoje mais do que se sabia, temos tecnologia melhor do que tínhamos, portanto podemos fazer um desenvolvimento melhor do que antes. Não vejo que a Rio+20 resolva um problema de muitas décadas. Minha expectativa é que possamos encaminhar novos rumos, visões alternativas, criativas para os gargalos que temos. Doações, aportes e cooperações fazem a diferença em muitos casos. O voluntarismo vai ser sempre bem-vindo, mas não pode ser a única coisa.
Quais são os temas para o Brasil tratar na Rio+20?
A Rio+20 surge de uma proposta feita à ONU pelo ex-presidente Lula. A sugestão foi acolhida e a agenda foi proposta com dois temas básicos: economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da pobreza, e o que se poderia chamar de governança para o desenvolvimento sustentável. Ela é inovadora porque a reunião do comitê preparatório será na semana anterior e o intervalo será usado para a realização de eventos sobre temas como energia, água, cidades. Nossa ideia é que isso seja uma forma de dar voz à sociedade civil. A ideia é que, dessas reuniões de temas especiais, saiam relatores que vão às mesas dos chefes de Estado. Com isso, estabelecemos uma ponte entre aqueles que lidam com o assunto e aqueles que decidem. Vamos preferir lidar com aqueles temas que não têm um nicho especifico de tratamentos, para que eles possam aflorar. Usando a economia verde como fio condutor, vamos discutir como integrar economia ambiente e desenvolvimento social, economia, trabalho decente e respeito ao meio ambiente.
Quando o ex-presidente Lula apresentou a proposta, ainda não tinha acontecido o que muitos consideram o “fracasso da conferência de Copenhague”. Como evitar um novo constrangimento?
O mundo mudou. Em 1992, o Brasil era muito diferente, e do ponto de vista econômico estávamos naquela crise inflacionária. A situação internacional hoje não é das mais propícias, porque há uma crise financeira e econômica mundial que atinge principalmente os países desenvolvidos, aquelas economias mais antigas. Ao mesmo tempo, é um mundo que testemunha o crescimento dos chamados emergentes, que passa por uma transformação econômica grande, talvez até de poder. É o caso dos temas que surgiram hoje, que não são novos mas assumiram papéis diferentes. É o mesmo caso dos países, que assumiram papéis diferentes. Copenhague foi um mau momento corrigido na conferência seguinte. Quer dizer que as circunstâncias internacionais, em certos momentos, levam a disfunções no sistema, mas o sistema tem a capacidade de se corrigir. Estamos em uma situação complicada, porém existe uma consciência internacional clara da importância do desenvolvimento sustentável. Não é só os governos acharem, é a sociedade que está muito mais mobilizada do que em 1992. A sustentabilidade passa a ser, para a maioria dos países, uma questão de política interna, sobre a qual os governantes têm que responder. Isto faz com que a Rio+20 possa ganhar o espaço de maior conferência da história.
O que está em discussão, quando se fala em economia verde, é a mudança dos padrões de produção e consumo. Há um amadurecimento para esta transição?
Em países de industrialização mais antiga, a Europa, por exemplo, há uma consciência ambiental grande. Nos últimos séculos, as questões de desenvolvimento econômico e social foram se resolvendo razoavelmente bem. O pilar ambiental, que, historicamente sofreu para que o desenvolvimento econômico acontecesse, passou a ser valorizado. A tendência foi de dar um foco maior à proteção ambiental. Com interlocutores de países em desenvolvimento, o oposto ocorre. Como o drama é erradicação da pobreza, eles tendem a privilegiar os pilares econômico e social, não dando tanta importância ao ambiental. O Brasil está em situação ímpar, porque nesses últimos anos tivemos progresso no pilar econômico, no social e no ambiental também. Temos a capacidade de ter essa visão equilibrada, coisa que nos outros países não ocorreu. O que está parcialmente ao nosso alcance é a questão dos resultados. Na presidência da Conferência, o Brasil vai, como já tem feito, ser neutro, mas não indiferente. Temos obrigação de fazer andar o debate e de promover consensos. O Brasil costuma ser bom em promover consensos. Vamos realizar um trabalho de debate informal com os países-membros da ONU, organizar reuniões de diálogos sobre os itens da agenda daqui até a Conferência, para ir desgastando as arestas, buscando criar pontes, estabelecer consenso. Já começamos um diálogo entre os órgãos do governo. Vamos coordenar um debate interno que abraçará governo, Legislativo, Judiciário, Estados, sociedade civil como um todo, ONGs, cientistas, empresariado, indígenas, comunidade tradicional… Temos uma matriz energética limpa, uma legislação social importante, mecanismos de desenvolvimento econômico importantes, e queremos ir além. Qual é a face brasileira da economia verde? É isto que nós vamos ter que definir internamente.
A questão real é como conseguir dinheiro para pavimentar a economia verde?
Em uma economia dinâmica como a nossa, o capital externo flui, e é ótimo que seja assim, é o lado de uma economia tradicional. Há também o lado da cooperação internacional, com parceiros importantes, como o caso do Fundo Amazônia, que tem aportes externos. Diz-se que o Brasil é uma potência ambiental, e a forma de traduzir isto em potência econômica passa muito por uma utilização racional, uma valorização do patrimônio natural. Não é uma questão de resposta fácil, porque não há consenso internacional em torno de como fazer a valoração desses bens e serviços e como financiar a conservação e a utilização deles. Isto faz parte do nosso debate para a Rio+20 e, internamente, é óbvio que este é um tema que ganha centralidade no debate.
O segundo tema em jogo é a definição de uma governança ambiental global. Por que há um vazio institucional nessa área?
Em Estocolmo, em 1972, surge a grande consciência internacional da importância do meio ambiente. Era um núcleo de pensamento europeu, uma visão de que o social e o econômico já estavam resolvidos, faltava a área ambiental. Essa consciência evoluiu para desenvolvimento sustentável, juntando desenvolvimento e meio ambiente. Em 1992, no Rio de Janeiro, criamos um conceito novo, que era o da integração, da sinergia, da visão conjunta. Já existia o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, o Pnuma, e foi criada a comissão de desenvolvimento sustentável, ligada ao Conselho Econômico e Social da ONU (Ecosoc). Hoje há uma consciência de que, embora isso tenha sido um passo importante, não há verdadeira integração entre os três pilares. No ambiental, o Pnuma é a face mais clara, é algo razoavelmente precário, feito por via de contribuições voluntárias. É um órgão amigo dos países no sentido de ajudar na adoção das políticas nacionais, das convenções ambientais. No pilar social, temos uma pulverização de órgãos de direitos humanos, trabalho, questão da mulher, mas não há uma coordenação única. No pilar econômico, a mesma coisa. Temos o Programa da ONU para o Desenvolvimento, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio, uma pulverização grande. Muitos dizem que o pilar ambiental é o menos visível, menos organizado, quando na verdade os três pilares carecem de coordenação. A ideia de governança para o desenvolvimento sustentável é de coordenação entre os três.
Seria o caso de se criar uma Organização Mundial do Meio Ambiente?
Alguns acham que sim, para outros o que resolve é o fortalecimento do Pnuma e uma coordenação entre os três pilares. Talvez uma alteração no mandato do Conselho Econômico e Social possa transformá-lo em um Conselho de Desenvolvimento Sustentável. Ele é um órgão importante, embaixo dele está toda a área social da ONU, direitos humanos, idosos, o Pnuma também se reporta ao Conselho Econômico e Social. Outra ideia é a criação de uma organização guarda-chuva. Não são ideias excludentes, queremos criar uma convergência.
Como foi a reunião mais recente da Comissão de Desenvolvimento Sustentável, em Nova York, que avalia anualmente o cumprimento da principal agenda da Rio 92?
Por ser a última antes da Rio+20, ela marcou distinções claras de pontos de vista, o que é absolutamente normal. Na última semana, até o penúltimo dia de uma conferência internacional, estão todos desesperados porque nada está fechado, está um de cada lado. Até que no último dia a coisa fecha, na madrugada. Ao longo deste ano, vamos polir as arestas, desbastar essas divergências de uma maneira mais informal. O que permite aos países se expressar de maneiras mais livres. O que eu quero é que a Conferência seja um êxito para o Brasil e tenha significado para o desenvolvimento sustentável. (Envolverde)