por Patricia Kalil –
Aqui na Amazônia, vivemos o fim do chamado “inverno amazônico”, que começa com a estação das chuvas por volta do solstício de dezembro. Agora, os dias e as noites parecem ter a mesma duração, com diferença de apenas alguns minutos. E não importa o horário: nesse tempo, toda noite chove muito. Já na região do Trópico de Capricórnio, linha imaginária que atravessa São Paulo, os dias estão ficando mais curtos e as noites, mais longas, até junho. Isso acontece porque a Terra tem uma inclinação de 23,5° em seu eixo, exatamente na latitude da capital paulista.
“Para chegares onde estás, para saíres de onde não estás,
a fim de chegares àquilo que não sabes,
tens de seguir o caminho da ignorância.
Para possuíres o que não possuis,
tens de seguir o caminho do despojamento.
Para chegares àquilo que não és,
tens de seguir pelo caminho em que não és.”
— T. S. Eliot, East Coker, Four Quartets
Apesar das diferenças, o espírito da travessia se insinua, aqui ou lá. Durante o inverno amazônico, com a abundância da água, a vida brota em silêncio. Fungos e briófitas recobrem troncos e pedras, sementes adormecidas despertam, a floresta renova suas vestes verdes. Já o outono em outras partes do mundo (e do Brasil) é simbolizado pela queda das folhas e pelas árvores nuas. Mas a planta não morre: ela recolhe a vida para dentro de si. A luz recua, a sombra se alonga, e entramos no tempo da travessia. É preciso saber aguardar sem pensar. Não é hora de pensar. É hora de encontrar a luz na escuridão da noite e a dança no silêncio. O ato de aguardar se sustenta na fé, na esperança e no amor. Para quem os sabe guardar.
Na cultura, o outono é visto como o tempo do amadurecimento e da renúncia. É a estação que nos ensina a deixar ir o que é velho, o que já frutificou, o que precisa abrir espaço para o novo. No fundo, é o mesmo ensinamento: a vida exige pausa para poder se recriar.
Aprendi esses dias que, em alemão, o Sol é feminino: die Sonne. Faz sentido. É a luz solar que tece, com suas ondas em vários espectros, o tempo e a vida da Terra. É ela quem dá a energia inicial, quem rege os ritmos da sementeira, da colheita, da queda das folhas. O calendário solar nasce dessa dança invisível entre a Terra inclinada e o Sol, que acende e recolhe as estações.
Mas nem tudo cabe nas quatro estações do calendário solar. Aqui na Amazônia, o tempo é outro: há apenas duas estações bem marcadas: o verão e o inverno amazônico, tempo das chuvas. O que se vê por aqui é um mesmo ciclo de água, que chega sem cessar, moldado pela variação da pressão atmosférica continental e pela temperatura das águas do Atlântico e do Pacífico tropicais. Este ano, a intensidade da chuva transformou a seca histórica do ano passado em um cenário de enchentes, que colocaram em situação de emergência cidades paraenses como São Félix do Xingu e Marabá (emergência decretada em março), Porto Velho, em Rondônia (abril), e Rio Branco, no Acre, todas afetadas por fortes cheias.
Existe também o que chamamos de calendário ecológico, ou estacionalidade ecológica. Ele reconhece que a natureza não muda em saltos bruscos, como um calendário convencional faz parecer. Na realidade, os ciclos da Terra, sobretudo em regiões tropicais e subtropicais como a Amazônia e boa parte do Brasil, seguem transições graduais. Muitas culturas tradicionais e povos indígenas já percebiam essas mudanças muito antes da divisão europeia entre primavera, verão, outono e inverno. O calendário ecológico entende a passagem do tempo em seis fases principais: a estiagem, quando a seca se impõe com força; a chuva inicial, com suas primeiras águas; a chuva forte, quando a precipitação atinge o auge; a enchente, quando rios transbordam e várzeas se alagam; a vazante, quando as águas começam a baixar; e o verão seco, quando um novo ciclo de calor se aproxima. Esses ciclos não obedecem datas fixas. Eles seguem a dança real da natureza, regida pelas chuvas, pela temperatura e pelos ventos.
Apesar dessa pressa nauseante da modernidade instantânea, precisamos resgatar os saberes ancestrais. Precisamos enfrentar essa amnésia causada pelo imediatismo dos tempos atuais. Precisamos reaprender a vibrar com a diversidade biológica e cultural. Os saberes sobre a natureza são os mais notáveis. Eles guardam a história da relação entre as pessoas e o local onde vive(ram), sendo moldada e transmitida de geração em geração, aperfeiçoada no tempo lento da escuta e da observação. Lembrar é também reencontrar a cadência da vida, esse compasso que a natureza nunca perdeu, mas que tantos de nós deixamos para trás.
As mudanças climáticas estão mudando as estações. As modelagens matemáticas falharam porque ignoraram que o ecossistema não se ajusta com um ou dois fatores isolados, mas com a complexa relação do todo. É tempo de pausar. De estudar. De ouvir os mais velhos, nossas bibliotecas vivas. O outono nos ensina a esperar sem garantias. A reconhecer que o tempo da natureza não se apressa nem se curva às ansiedades humanas. Se as estações estão mudando, se o chão parece escapar sob nossos pés, talvez seja porque esquecemos dos ensinamentos antigos. É hora de reaprender a aguardar. De confiar na vida que se recolhe para renascer. De caminhar na escuridão sem medo, como quem guarda a semente no silêncio da terra.
Foto de Daniel Govino (instagram: @daniel_g_govino), no rio Tapajós
PATRÍCIA KALIL para Envolverde, direto do coração da Amazônia
Toda semana, a jornalista e estudante de Engenharia Florestal Patrícia Kalil escreve de Santarém (PA), onde vive há mais de uma década. A partir da floresta, dos rios e das lutas socioambientais da região, ela compartilha reflexões, reportagens e histórias que nos ajudam a entender o que está em jogo na maior floresta tropical do planeta. E como isso afeta a vida de todos nós. Uma coluna para pensar o presente e sonhar futuros possíveis.