Por Neuza Árbocz*
Como a prática de roubar o dinheiro público engendra ódio e intolerância em uma nação.
É fácil ver a conexão da corrupção com a miséria, com falhas e lacunas em serviços essenciais como saúde e educação. Contudo, mais sútil é entender como a extorsão e o desvio de recursos públicos contribuem para posições radicais em uma nação.
A jornalista norte-americana Sarah Chayes vivenciou na pele essa ligação ao mergulhar na dura realidade do Afeganistão, para onde foi em 2001, engajada na cobertura da luta contra os terroristas que derrubaram as torres do WTC em Nova Iorque, naquele ano.
Cansada de apenas escrever sobre dramas alheios, Sarah tomou a decisão de ficar no país e ajudar a amenizar o sofrimento da guerra para aquele povo. “Decidi trabalhar pela reconstrução de um vilarejo, bombardeado por engano pelo exército dos EUA”, conta em entrevista ao programa Milênio, da GloboNews.
A empreitada começou bem, com uma resposta generosa de amigos, parentes e conhecidos que ela acionou em busca de doações. Dinheiro garantido, as dificuldades surgiram onde ela menos esperava. “Embora toda a região de Kandahar – foco de sua atuação – seja abundante em pedras, não havia meio de comprá-las para reerguer as casas. Isso porque o governo local decretou monopólio de seu comércio. O motivo? Para vendê-las superfaturadas a bases militares norte-americanas, que não faziam ideia dos preços do material”, conta a repórter de guerra.
Como ela vivia entre o povo, sem barreiras ou barricadas, passou a ser uma referência da ‘americana’ que poderia resolver as atrocidades em curso. “Cansei de ouvir da população como, desde o menor funcionário público, como um guarda de rua, até o presidente afegão, exigiam taxas e propinas para a menor tarefa que lhes cabia. Inclusive nos momentos de maior dor, como para liberar um corpo de um parente e emitir seu atestado de óbito”, relata Sarah.
Quem se recusava a pagar, sofria ameaças e represálias. “Pegue um jovem afegão, forte, cheio de vida, que toma um tapa na cara ou assiste seu pai passar por isso ao se negar a ceder à corrupção e entenderá a revolta que leva muitos para as fileiras dos Talibãs. Os extremistas garantem que colocarão fim à corrente de extorsão. Esse passa a ser um chamado muito tentador, se não o único a dar esperança de mudança à população”.
“Podem trazer mais e mais soldados, nada disso mudará o Afeganistão se não acabarem com a corrupção”, foi o conselho que Sarah mais ouviu dos moradores daquele país. Incomodada com a situação, ela procurou o alto comando do exército em Washington para expô-la. Foi ouvida com atenção. De fato, o esquema de opressão existente era desconhecido por eles até então. A ganância ampliada pela presença norte-americana em terras afegãs – e a fonte de dólares que ela representava – passava despercebida em meio ao stress do combate diário aos radicais dispostos a tudo para vencer o inimigo “ianque’.
Os corruptos estavam, infelizmente, na base de ‘aliados’ e hostilizá-los, em defesa da população, traria ainda mais dificuldades para a operação no território.
Nesse cenário complexo, e com apoio do chefe das Forças Armadas dos Estados Unidos, Sarah seguiu suas pesquisas e demonstrou como em diferentes países e períodos históricos, a corrupção de alto escalão gera uma bolha de ódio e intolerância, que muitas vezes eclode em caos na própria nação-vítima.
Os fatos investigados e seus argumentos resultaram no livro “Ladrões de Estado”, um relato tocante da ligação da corrupção com ondas de ódio e violência.
Uma leitura essencial para a situação no Brasil atual. A corrupção cavalar, revelada por recentes investigações como a Lava Jato, em vez de trazer alivio por sua descoberta e desmantelamento, ao contrário. Põe fogo na indignação e alastra uma profunda raiva, fruto do sentimento de traição e abuso que temos ao nos reconhecermos ‘feitos de bobo’ pelos ladrões da nação.
As notícias nutrem uma disposição para o combate que, no entanto, não tem para onde fluir. Assim, esta acaba por extravasar em manifestações nas mídias sociais, gritos de ordem, passeatas e até no afrontamento cara a cara, seja de um suspeito encontrado por acaso, seja de um desconhecido que ‘ousa’ defender este ou aquele ‘lado’- como se existisse uma linha clara entre honestos e desonestos em que pudéssemos nos fiar.
O cenário é, infelizmente, bem mais confuso e pede muita cautela com julgamentos apressados. A vontade crescente de justiça reparadora fica à espera, como um bicho selvagem agoniado em sua jaula dentro de cada cidadão e cidadã honesta.
Contudo, não há muitas opções, a não ser a de resistirmos ao clima de desconfiança geral da máquina pública. Garimparmos os bons exemplos na gestão pública, para retomarmos fôlego e contribuirmos, de nossa parte, em fortalecê-los com voto consciente e ação incorruptível, nos mínimos detalhes do dia a dia.
Do contrário, a suspeita de roubalheira mina a vontade de pagar impostos e seguir as regras que organizam o trabalho e os ganhos no país e pode passar, ela própria, a retro-alimentar os desvios de conduta e ética que assolam o país. (#Envolverde)
* Neuza Árbocz é jornalista e pioneira da Internet do Brasil. Integrou a equipe que instalou o Yahoo! no Brasil em 1999 e foi responsável pelo conteúdo editorial do portal por seis anos. Especializou-se em Educomunicação e Gestão de Projetos Socioambientais. Foi responsável por Redes Sociais para o grupo internacional Aegis Isobar, de 2008 a 2014. Formou-se em Design para a Sustentabilidade pelo Gaia Education, educadora vivencial pelo Sharing Nature Brasil e como agente urbano socioambiental pelo programa Carta da Terra. Desenvolveu materiais para o ICLEI, o Sebrae e o BID – Banco Interamericando de Desenvolvimento. Atuou como gerente de Gestão Integrada de Território – GIT, do Instituto IBIO. Trabalha por um desenvolvimento local, integrado e sustentável em diversos pontos do Brasil e dirige projetos de Comunicação e Educacionais para Editora Horizonte. Ministra palestra sobre Sustentabilidade no Dia a Dia, Leitura crítica da Mídia, e Redes Sociais e Cidadania Planetária. Colaboradora especial da Envolverde em serviços, cursos e projetos jornalísticos. Integra a RBJA – Rede Brasileira de Jornalistas Ambientais e a rede Greenaccord de jornalistas ambientais internacionais. É também colunista da Envolverde.