“Os agentes financeiros são irresponsáveis e usam transações privadas para ganhar dinheiro a risco altíssimo e, quando ocorrem as crises financeiras, jogam as responsabilidades nas mãos do Tesouro. Criou-se a cultura de que banco grande não vai à falência porque o Tesouro socorre”, constata economista Guilherme Delgado.
Mais uma vez o mercado internacional está atento aos movimentos da economia norte-americana. Depois da crise de 2008, os EUA preocupam por causa do possível calote da dívida pública no dia 2 de agosto. “Não acredito no risco imediato de uma moratória por conta de um não acordo no Congresso, porque, em última instância, o poder executivo americano pode emitir uma espécie de medida provisória, um decreto presidencial com caráter emergencial”, afirma o economista em entrevista à IHU On-Line, por telefone.
Segundo Delgado, a dívida pública de 14,3 bilhões de dólares atingiu este patamar depois da crise econômica de 2008, quando “o governo Obama emitiu uma quantidade enorme de títulos da dívida pública para sanear o sistema financeiro”. A tentativa de evitar uma crise econômica profunda naquele ano gerou, de acordo com o economista, um problema subsequente com a ampliação “desmensuradamente” da dívida pública. Para ele, crises econômicas mal resolvidas e administradas de maneira insustentável criam dilemas econômicos e sociais ainda mais intensos e difíceis de resolver.
De acordo com o economista, a crise econômica dos EUA representa um “risco iminente de ataque especulativo à economia brasileira”. Para ele, as economias emergentes poderão ser afetadas se houver uma crise financeira global, que “provocaria uma fuga enorme de capital das economias emergentes para as economias centrais”. Se isso acontecer, explica, “em questão de seis meses o Brasil e demais países emergentes podem passar de uma situação relativamente confortável, para uma situação de inadimplência potencial”.
Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
IHU On-Line – Como o senhor vê as iniciativas do governo brasileiro para evitar uma valorização ainda maior do real frente ao dólar? Quais são as implicações da desvalorização do dólar para a economia nacional brasileira?
Guilherme Delgado – As medidas que têm por objetivo conter a ultravalorização do real estão respondendo a uma situação anterior preocupante, que se manifesta, do ponto de vista sintético, em uma elevação do déficit na conta corrente com o exterior. Esse déficit é composto de duas grandes contas: a conta de exportação de mercadorias e serviços, na qual o Brasil tem superávit comercial, porque ainda exporta muitas commodities, o que permite um saldo comercial relativamente pequeno, algo em torno de 15 bilhões de dólares ao ano; em contra partida, a conta de serviços é altamente deficitária, pois tem um déficit da ordem de 70 bilhões de dólares, o que leva o Brasil a ter déficit médio na ordem dos 50 bilhões de dólares ao ano. Esse déficit sempre é financiado com dívida externa ou com ingresso de capitais estrangeiros. Nos dois casos, é preciso ter capacidade de solvência em médio prazo. Então, ou o país paga a dívida, ou remunera o capital estrangeiro que entra no mercado interno.
A remuneração desse capital que financia o déficit na conta corrente é feito em moeda estrangeira, a qual só é gerada a partir das exportações. Então, o nó da questão está aí: ou o país tem capacidade para exportar de forma crescente para solver essa dependência externa, ou o país entra em um processo de acumulação de déficits, que torna a economia vulnerável a ataques especulativos, crises cambiais etc.
Política econômica
As medidas do governo brasileiro vão nessa linha de evitar crises porque, com a supervalorização do real, o Brasil perde capacidade de exportação e perdendo capacidade de exportação, o país cria um problema de médio prazo. Por outro lado, uma dificuldade econômica não se manifesta imediatamente no Brasil porque tem dinheiro sobrando no mundo, o qual está afluindo no país, valorizando ainda mais o real e criando uma “corda longa no pescoço”, a qual, em algum momento, será puxada.
As medidas do governo foram na linha da taxação de até 25% das operações com os derivativos, que são aquelas apostas que se faz no câmbio futuro com vistas a ganhar dinheiro com perspectiva de valorização ou desvalorização do real. Essas apostas passaram a ser taxadas e obrigadas a serem registradas em bolsas de valores. Com a possibilidade de taxação em até 25% dessas operações especulativas, o governo freia essa jogatina do mercado de futuros. Essa medida é positiva, mas poderia ter sido aplicada há muito tempo, porque o Brasil já está em uma situação de perda de competitividade das exportações industriais há vários anos. Hoje, o país é um dependente líquido de produtos industriais e de serviços, e isso coloca o país em uma situação de vulnerabilidade externa.
A situação financeira brasileira tem se agravado, mas ela não aparece desta forma para a opinião pública porque as pessoas costumam analisar os fatos imediatos da conjuntura. Entretanto, a situação da conta corrente brasileira está se deteriorando há quatro anos. A solução encontrada pela opção primária exportadora não resolve esse problema. Pelo contrário, é uma parte do problema.
IHU On-Line – Qual sua opinião em relação à integração dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento com o Banco Central? Esse entrosamento tem a ver com a gestão da presidenta Dilma, que é economista, ou com o atual cenário de crise internacional?
Guilherme Delgado – Esse entrosamento é importante porque a política econômica financeira, de forma inescapável, depende da autoridade monetária, do sistema orçamentário e do Tesouro Público. Cada setor está em um departamento diferente: o sistema monetário é função do Banco Central; o orçamento depende do Ministério do Planejamento; o Tesouro Público é uma secretaria do Ministério da Fazenda. Então, necessariamente, esses órgãos devem estar coordenados.
A experiência brasileira de divisão completa entre Banco Central e Ministério da Fazenda refletiu a personalidade do ex-presidente Lula, que trouxe para a administração pública práticas internas do PT, em que o presidente ficava esperando para ver quem ganhava para poder arbitrar. Esse posicionamento não é bom para a administração pública e funciona como um jogo de soma zero, ou seja, um faz e o outro desmancha.
A gestão Dilma é mais cuidadosa e executiva no sentido de imprimir o mínimo de unidade na política econômica financeira. Essa política tem que aparecer unitária, porque, do contrário, os investidores ignoram o sistema de política econômica.
IHU On-Line – Como vê o impasse entre democratas e republicanos em relação ao pagamento da dívida pública americana? Há risco de o país declarar moratória?
Guilherme Delgado – Não acredito no risco imediato de uma moratória por conta de um não acordo no Congresso, porque, em última instância, o poder executivo americano pode emitir uma espécie de medida provisória, um decreto presidencial com caráter emergencial.
Evidentemente, o governo tenta exaurir e incluir o Congresso em uma medida crítica para dividir responsabilidades. O Congresso, por sua vez, faz uma “onda eleitoral” e enfatiza que terça-feira, dois de agosto, será o dia do “fim do mundo”.
O elemento de fundo dessa questão é o fato de a dívida pública norte-americana ter alcançado o patamar elevadíssimo de 14,3 bilhões de dólares – esse valor representa mais ou menos 14 vezes o PIB brasileiro. A situação atingiu esse nível porque a economia norte-americana já vinha carregando um déficit público mais ou menos administrável antes da crise de 2008. Entretanto, para gerir a crise iniciada naquela época, o governo Obama emitiu uma quantidade enorme de títulos da dívida pública para sanear o sistema financeiro, o sistema de endividamentos, que estava conduzindo a economia americana para uma crise muito profunda. Ao resolver o problema da crise dessa forma, gerou-se um problema subsequente, quer dizer, ampliou-se desmensuradamente a dívida pública e, com essa ampliação, os EUA não têm mais aquele raio de ação de continuar fazendo duas ou três guerras mundiais, manter uma frota militar enorme, um programa nuclear avançado e, ao mesmo tempo, gerir o sistema financeiro.
Certamente alguns setores serão limitados daqui para frente. Os republicanos querem constranger o gasto social em saúde, educação, habitação etc. Os democratas, por sua vez, tentam manter o gasto social e, portanto, o conflito distributivo está presente nesse impasse do Congresso. Esse conflito reflete uma situação pretérita de superendividamento provocado, mais recentemente, pela fortíssima emissão de dívida pública para financiar os passivos financeiros da crise de 2008.
IHU On-Line – O que muda na economia internacional com a queda do crescimento norte-americano? As economias asiática e chinesa tendem a crescer mais?
Guilherme Delgado – Com o processo de superendividamento das economias centrais (norte-americana e europeia) deve acontecer, em médio prazo, uma semiestagnação do crescimento dessas economias, já que os cortes com o gasto público afetam o crescimento econômico.
A gestão da dívida pública dessas economias deve provocar um arrefecimento do crescimento europeu e norte-americano nos próximos três anos. Isso afetará a economia global e a asiática, porque elas também exportam para o centro ocidental. Também deve haver um arrefecimento das taxas de crescimento globais, já que as crises econômicas não foram resolvidas. Elas foram administradas de uma forma não saudável do ponto de vista da responsabilização dos agentes econômicos que provocaram o superendividamento e a necessidade de socorro do Tesouro. O socorro do Tesouro é oferecido para evitar um dano maior no curto prazo, mas, no médio prazo, cria-se o problema da dívida pública, que tem de ser administrado com um certo conflito em relação ao crescimento econômico.
IHU On-Line – É possível resolver a questão das dívidas públicas, considerando que os Estados sempre quitam as dívidas bancárias? É apenas um problema de irresponsabilidade financeira?
Guilherme Delgado – Vou explicar essa questão citando um exemplo do caso brasileiro. Depois de instituir o real, o Brasil teve um processo de saneamento financeiro como o Programa dos Bancos Privados, Programa dos Bancos Públicos, o reconhecimento de passivos do fundo de compensações de variações salariais, etc. e tudo isso gerou um passivo enorme. Quer dizer, o Tesouro Público Brasileiro emitiu títulos da dívida pública para sanear os bancos e demais agentes financeiros que tinham passivos podres em mãos. Então, o Tesouro assumiu essas dívidas e as colocou em cobrança judicial em milhares de processos, que foram para a Procuradoria da Fazenda Nacional, a Procuradoria do INSS, etc. Estes processos estão correndo até hoje, e são administrados de uma forma extremamente desigual porque faltam advogados e porque os devedores são mais ágeis que o Estado.
É mais ou menos isso que acontece no plano internacional, ou seja, o Tesouro Público assume o ônus, e a responsabilização dos agentes fica diluída e difícil de ser apurada. Isso cria um caldo de cultura para novas operações de assalto ao Tesouro. É isso que acontece nos EUA e na Europa: os agentes financeiros são irresponsáveis e usam transações privadas para ganhar dinheiro a risco altíssimo e, quando ocorrem as crises financeiras, jogam a responsabilidade nas mãos do Tesouro. Criou-se a cultura de que banco grande não vai à falência porque o Tesouro socorre. Sabendo disso, o banco tem outra cultura de responsabilidade civil e criminal.
Precisamos levar ao debate público a questão da responsabilidade financeira. Existem leis de responsabilidade fiscal, mas não existe lei de responsabilidade financeira. Isso possibilita que os “trambiqueiros” do sistema financeiro apareçam, antes e depois da crise, como grandes salvadores da pátria. Essa discussão precisa aparecer porque ela é uma causa ética do recrudescimento frequente das crises financeiras. Desde que o capital financeiro se globalizou, tornou-se difícil controlar os fluxos internacionais de capital. Com isso, as economias ficaram mais instáveis e, portanto, as crises começam a aparecer com mais frequência. Antes, elas aconteciam de 5 em 5 anos, 3 em 3 anos, mas, agora, acontecem de mês em mês. Não se resolve a crise sem uma responsabilização ética e, principalmente, criminal.
IHU On-Line – Como os Estados tendem a investir no sistema de bem-estar social e políticas sociais a partir dessa onda de crises financeiras? A tendência é que os países diminuam os investimentos nessa área?
Guilherme Delgado – Esse é o debate atual dos dois lados do Congresso americano. O governo Obama, tardiamente, fez uma investida no sentido de ampliação dos temas de proteção à saúde nos Estados Unidos que, por incrível que pareça, era um dos únicos países centrais que não tinha um sistema de saúde público descente. Eles tentaram, de maneira mitigada, subvencionar planos privados de saúde para os pobres. Entretanto, os republicanos querem cortar esses gastos, até porque eles nunca concordaram em investir dinheiro público em gastos sociais.
No caso brasileiro, o gasto social global do governo federal tem a ver com os direitos sociais constitucionalizados e, portanto, boa parte dele não é restringível. Entretanto, na prática, gastos com infraestrutura, educação, saúde acabam sendo restringidos, o que é ruim para o estado de bem-estar social.
De alguma maneira, o crescimento econômico depende da manutenção e da ampliação desses gastos, como também da manutenção das regras de direito social e da pressão política para dar prioridade para essa direção. Acredito que, se houver um processo de menor crescimento econômico, as políticas sociais serão afetadas.
IHU On-Line – Como que o Brasil deve se comportar tendo em vista esse cenário internacional de turbulência? As crises internacionais podem afetar o mercado interno?
Guilherme Delgado – Não há um risco iminente de ataque especulativo à economia brasileira e essa é uma boa notícia, se for usada de forma prudente e sábia. Já que o Brasil tem condições de se preparar para o pior, não precisa esperar uma situação de crise acentuada para tomar iniciativas.
O pior cenário que podemos imaginar é o sistema mundial evoluir para uma crise financeira global, a qual provocaria uma fuga enorme de capital das economias emergentes para as economias centrais – isso já aconteceu em outros momentos de crise. Se isso acontecer, em questão de seis meses o Brasil e demais países emergentes podem passar de uma situação relativamente confortável, para uma situação de inadimplência potencial. Então, o Brasil precisa se resguardar de alguma maneira. Uma delas é tomar medidas como as anunciadas pela equipe econômica para impedir a supervalorização do real. Em segundo lugar, é fundamental diversificar a pauta de exportações de forma a sair da dependência profunda de produtos primários. Com as medidas cambiais e medidas de incentivo técnico e de fomento econômico, o país precisa relançar o setor industrial no comércio exterior. Também é necessário criar um programa de investimentos mais autônomo em relação ao capital estrangeiro ou fazer com que esse capital tenha compromissos diretos ou indiretos de geração de recursos externos.
Esse capital estrangeiro que está isento de responsabilidades tem que ser objeto de um contingenciamento porque ele funciona, para o Brasil, como uma corda longa presa ao pescoço e que, em algum momento, vai nos enforcar.
O crescimento econômico precisa tornar viável a manutenção de uma política social de caráter distributivo. Essa é a única forma de um país crescer com melhoria da igualdade. O Brasil deve perseguir esse padrão de desenvolvimento. Nesse sentido, a crise externa e a desmontagem do enredo e da armação da economia brasileira no sistema mundial pode ser uma solução interessante para o país.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.