Por: Lúcio Flávio Pinto*, Amazônia Real –
Quando a Companhia Vale do Rio Doce foi privatizada, em 1997, a ferrovia de Carajás transportava 35 milhões de toneladas de minério de ferro desde a mina, na região central do Pará, 500 quilômetros a sudoeste de Belém, até o porto da Ponta da Madeira, na ilha de São Luís, no Maranhão, por 897 quilômetros.
É a conexão da maior província mineral do planeta a um dos principais terminais de embarque de minérios do mundo, sob controle completo da então estatal. Ele mede 3,5 quilômetros de extensão e tem um peso bruto de 41,67 mil toneladas quando carregado e com 330 vagões. No ano passado, a estrada de ferro transportou diariamente em média 592 mil toneladas métricas de minério de ferro e 34 mil toneladas métricas de outras cargas, além de 302 mil passageiros.
Mesmo com a crise econômica provocada pela pandemia do coronavírus, a ferrovia deverá transportar neste ano quase sete vezes mais: 230 milhões de toneladas. No ano que vem, um adicional de mais 10 milhões de toneladas, consolidando Carajás como a maior ferrovia de carga do mundo.
Quase metade dessa produção sairá da mais nova das minas, que é também a maior e mais rica. O S11D só tem três anos de inaugurada, mas já chega a 90 milhões de toneladas e poderá atingir, dentro de dois ou três anos, 120 milhões de toneladas do minério de ferro de mais alto teor de hemática disponível.
Graças a essa mina, a Vale criou o BRBF, “um produto de alta qualidade resultante da mistura de finos de Carajás, que contêm uma maior concentração de ferro e uma menor concentração de sílica no minério, com finos provenientes dos Sistemas Sul e Sudeste, que contêm uma menor concentração de ferro no minério, mas também uma menor concentração de alumina”, diz a mineradora em seu relatório.
Esse novo tipo de produto, mais refinado e mais caro, é criado fora do Brasil, no terminal marítimo da Vale de Teluk Rubiah na Malásia e em 17 portos na China. Esse processo “reduz o tempo necessário para se chegar aos mercados asiáticos e aumenta a nossa capilaridade de distribuição por permitir o uso de embarcações menores”, contornando a proibição que a China impôs aos navios cargueiros de mais de 300 mil toneladas, que a Vale encomendara para conseguir ganhos no frete.
No ano passado a Vale lançou outro produto, o GF88, para suprir o crescente mercado de produção de pelotas na China. Este produto consiste em finos de Carajás que abrem um novo mercado para o portfólio de alta qualidade da companhia, que já está avaliando o desenvolvimento e a produção de mais um produto: os metálicos.
São matérias-primas de aço com uma alta porcentagem de ferro metálico. Eles podem apoiar a indústria siderúrgica no seu desafio de reduzir as emissões de carbono, cumprindo seus requisitos de qualidade com menos investimentos, enquanto usa tecnologias mais avançadas.
Graças a esses êxitos comerciais, novos alvos estão sendo visados pela pesquisa e o planejamento, incrementando a produção numa escala inimaginável. Os estudos sobre novas minas incluem a Serra do Rabo, N1 e N3 na Serra Norte. Quando acabar a hematita, a alternativa será concentrar os itabiritos (com 35% de ferro), como já é feito em Itabira, em Minas Gerais. É um minério mais pobres, mas os depósitos devem conter algo como 50 bilhões de toneladas, correspondentes a cerca de 25 bilhões de magnetita.
Provavelmente por causa dessas projeções, a Vale decidiu se antecipar à renovação da concessão da ferrovia. O prazo atual, iniciado em 1997, quando aconteceu a privatização, vai até 2027.
A mineradora propôs no ano passado antecipar a prorrogação por mais 30 anos, até 2057. A autorização empacou no Tribunal de Contas da União, onde o relator do pedido considerou o valor atribuído pelo governo federal muito baixo.
A diferença de valor entre o que a Agência Nacional de Transporte Terrestre fixou (tarifa de R$ 38,31 por mil toneladas) em vez da média de empresas menos lucrativas do setor ferroviário, passa de 14 bilhões de reais. No projeto original, a mineradora, ao invés de pagar por Carajás, ainda receberia R$ 1,4 bilhão, em função dos investimentos que fez na ampliação da linha férrea e outras benfeitorias, todas em seu favor, já que mais de 90% do que transporta é carga sua.
Esses valores mostram que não será pouco o dinheiro que a Vale precisará gastar para conseguir a prorrogação. O governo federal pretende aplicar esse recurso na construção de duas novas ferrovias pela própria mineradora: um trecho da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste, de Água Boa (em Mato Grosso) a Mara Rosa (em Goiás), e uma nova linha entre Cariacica e Anchieta (no Espírito Santo).
Quanto custarão essas duas ferrovias não se sabe. Mas o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, informou na semana passada que, mesmo com esses dois empreendimentos, ainda sobrará um valor de outorga devido pela Vale como contrapartida à União pela renovação antecipada I(e pelo valor menor). Essa “sobra” será usada na compra de trilhos para a obra inacabada da Transnordestina, que foi retomada recentemente, e no segundo trecho da Fiol, entre Caetité e Barreiras (na Bahia).
“Ainda vai sobrar uma outorga livre. Temos que fechar o valor com o TCU, mas dará um impulso nessas duas obras”, afirmou o ministro numa live. Ele manifestou confiança na liberação pelo TCU, que está examinando o processo e tem um parecer técnico contrário à renovação, ainda no segundo semestre deste ano.
Esse mecanismo de investimentos cruzados passou a ser permitido por lei sancionada em 2017 e regulamentada por decreto presidencial no ano passado. Não é preciso mais reinvestir no local da concessão, que seriam Pará e Maranhão, além de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, no caso da outra ferrovia, a Vitória a Minas, também em processo de renovação antecipada.
O assunto parece estar sendo tratado em algum lugar distante do Pará e da Amazônia, que não parecem interessados em acompanhar as decisões que virão – contra ou a favor.
Imagem de destaque: A imagem que ilustra este artigo mostra uma vista aérea da mina no Complexo S11D Eliezer Batista. (Foto: Ricardo Teles/Agência Vale)
*Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.
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