Com consternação acompanho de longe o retrocesso que espero passageiro nas políticas públicas de tratamento de drogas no Brasil. A luta é constante entre o setor conservador, baseado no modelo psiquiátrico e o setor que representa a reforma psiquiátrica e as Conferências Nacionais de Saúde Mental com posições mais contemporâneas.
De um lado, a presidenta Dilma parece desconhecer o papel histórico de baluartes de seu partido, como os ex-prefeitos Telma de Souza e David Capistrano Filho, que na sequência de mandatos do PT em Santos – dos quais tive o privilégio de participar – demonstraram que a violência dos nosocômios e tratamentos enclausurados poderiam e deveriam ser substituídos por modelos baseados em tratamento ambulatorial, voluntário, público e gratuíto, de base comunitária, com intervenções psicossociais e sob o controle do setor de saúde em seu amplo aspecto e, claro, amparados na ciência.
Ninguém é dono da verdade quando se fala de tratamento de dependência de estimulantes – cocaína, metanfetaminas e outros –, mas o Brasil com os Caps AD (Centro de Apoio Psicossocial Álcool e Drogas) vinha se tornando um modelo público de recuperação da dependência e de reinserção social, observado e aplaudido por todo o mundo. Os Caps AD implantados no governo de FHC, foram amplamente espalhados pelo país nos dois mandatos do presidente Lula.
A decisão de apoio aberto às chamadas comunidades terapêuticas, é um sinal de retrocesso que pode levar o Brasil à “argentinização” da resposta ao problema da dependência química. Um modelo privado, ineficiente, caro e sem sucesso.
Mais grave ainda é o movimento da Prefeitura do Rio de Janeiro, sob a liderança do prefeito Eduardo Paes, do PMDB, e do debate que se segue na cidade de São Paulo na administração Kassab, que seguem pela mesma linha de tratamento compulsório para usuários de crack. O tratamento compulsório da dependência química não funciona. A OMS preconiza que o tratamento compulsório só pode ser empregado em situações excepcionais, e por tempo muito limitado, sempre sob decisão judicial, e não do psiquiatra ou da assistente social, como tem sido o caso. Jamais em massa! Não há uma epidemia de casos excepcionais em que o usuário em questão esteja em risco de vida ou coloque a comunidade em sério risco, como preconiza a OMS para aceitar a excessão. Aliás como vem sendo conduzido no Rio de Janeiro não tem muita diferença de modelos espalhados pela Ásia, como aqui no Vietnam ou na China, onde o tratmento compulsório tem sido combatido com veemência por nós Organização das Nações Unidas (ONU) ou por entidades da sociedade civil como a Human Rights Watch, pela violação de direitos humanos fundamentais.
A política pública de drogas e a histeria causada pelo crack são desproporcionais. O Relatório da ONU sobre Drogas de 2010 mostra que a droga que mais cresceu no mundo e no Brasil foram as metanfetaminas, outro estimulante mais fácil de produzir, comercializar, disseminar e, dependendo do uso, tão ou mais danoso que o crack. A falta de uma Política Pública sobre Drogas adequada, pragmática, humanitária, pautada na realidade e nos direitos humanos é o problema de fundo do Brasil. Neste ponto a voz mais lúcida do país tem sido a do ex-presidente Fernando Henrique. A epidemia de crack é só um sintoma e a reação a ela um desespero de quem não tem proposta de médio e longo prazo para enfentrar um fenômeno que sempre esteve presente na humanidade. Enquanto isto, para usar o jargão do futebol, invista nos Caps AD e não mexa em time que está ganhando.
* Fábio Mesquita é médico pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), atualmente chefe da Equipe de Controle de HIV/aids da Organização Mundial de Saúde no Vietnam, um país onde a epidemia de aids é totalmente associada ao uso de drogas.
** Publicado originalmente no site da revista CartaCapital.