Rebeldes, mas não ‘ladrões’

[media-credit name=”Leon Neal/AFP” align=”alignleft” width=”300″][/media-credit]
Londres em noite de saques e prisões. Conflitos começaram após polícia ter matado um morador negro na quinta-feira.
A onda de violência na Grã-Bretanha foi provocada por um bando de “ladrões”´ e “doentes”. Numerosos pertencem a gangues de jovens encapuzados, os hoodies. Palavras do primeiro-ministro britânico, David Cameron, em sessão extraordinária no Parlamento, nesta quinta-feira 11. Em miúdos, os ladrões, ou doentes, ou quem sabe ladrões doentes encapuzados, não têm uma agenda. Só querem saquear.

Foram raros os articulistas britânicos a questionar o discurso simplista do primeiro-ministro conservador. Para minha surpresa, até colunistas de diários de esquerda, como o The Independent, concordaram com Cameron. Esses escribas não levaram em conta como a maior recessão desde os anos 1930 e o programa de austeridade implementado pelo governo suscitaram a erosão da qualidade de vida das classes médias e pobres. Também ignoraram o fato de os integrantes de minorias serem os mais afetados pela crise e pelo programa de austeridade. Colunistas da imprensa brasileira adotaram, acríticos, a fórmula de Cameron: os rebeldes são ladrões.

Cameron, vale exprimir, está atravessando a crise mais grave desde que assumiu o cargo, 15 meses atrás. Teve de encurtar suas férias na Toscana, e, ao chegar a Londres, vestiu a camisa do premier linha-dura. Em grande parte, adotou essa postura devido à sua imagem negativa nas pesquisas. Em uma delas, a maioria das 2.534 pessoas interrogadas (57%) revelou-se insatisfeita com a lenta reação do primeiro-ministro. Na mesma enquete, a maioria dos britânicos (42%) estimou que as manifestações estão ligadas a comportamentos criminosos. E apenas 8% dos interrogados acham que a onda de violência é consequência do programa de austeridade. Criticado por ter tido de cortar 16.200 policiais por conta do programa de austeridade, Cameron cogita usar o exército se houver novos protestos.

Nas revoltas que sacudiram a França no final de 2005, os jovens também não tinham uma agenda. Como os ingleses, saquearam lojas e supermercados. Adotaram, ainda, a prática de incendiar automóveis. Na verdade, o problema, como sempre nessas revoltas a assolar a Europa, é muito mais profundo. Além de ter raízes na recessão, a questão do racismo sempre entra na equação. Na Grã-Bretanha, os conflitos tiveram início dois dias depois de a Scotland Yard matar Mark Duggan, um negro de 29 anos e pai de quatro filhos. Na esteira, minorias e brancos – e, de fato, hoodies –, se agregaram às manifestações país afora.

O programa de austeridade provocou o declínio dos serviços públicos, e o nível de desemprego, principalmente no setor público, está em ascensão. As medidas adotadas pelo governo alastram a fissura entre privilegiados e classes médias. O governo de Cameron cortou, por exemplo, os impostos do 1% dos mais endinheirados e aumentou o valor agregado – em período de recessão. Em suma, o poder aquisitivo das classes médias só pode declinar. Ao mesmo tempo, a fatia dos pobres, em sua maior parte formada por minorias marginalizadas, cresce.

Quem não ficaria revoltado com essas medidas a favorecer os privilegiados? Lee Jasper, ativista pelos direitos das minorias, respondeu para o diário italiano La Repubblica: “Condeno a violência, mas em parte. Condeno mais a violência econômica: o desemprego, a falta de oportunidade para os jovens no futuro. Essa violência não é reconhecida”.

Na verdade, não surpreende o fato de essas revoltas terem acontecido no Reino Unido, o país com maior disparidade social na Europa. Segundo um artigo do semanário Time, publicado em 2008, uma em cada três crianças nasce abaixo do nível de pobreza. A escassa possibilidade de mobilidade social deve-se à estrutura de classes, mantida pelas elites em grande medida por meio do sistema escolar. O ensino na maioria das escolas públicas é muito inferior ao das particulares. No setor público a média de alunos por classe é 26,2% comparada a 10,7% no privado.

A Fulham Prep School, escola privada ao sudoeste de Londres, cobra 24 mil dólares ao ano por criança. Essas escolas formam os futuros alunos de Oxford e Cambridge (ou Oxbridge), num reino onde 93% da população estudam em escolas públicas. Se os 7% a frequentar as particulares chegam a Oxbridge, cerca de 50% dos alunos de escolas públicas têm o mesmo paradeiro. E qual será o porcentual dos outros 50% que viram violentos hoodies? Esses excluídos tendem a participar em levantes de todos os tipos. E saqueiam. Mas as raízes dos levantes são mais profundas…

* Gianni Carta é jornalista, correspondente de CartaCapital em Paris, escreve sobre coisas da vida do Hemisfério Norte.

** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.