Diversos
A década da restauração
Ano que vem a ONU vai lançar – durante a quinta assembleia da UNE (United Nations Environment) – a Década da Restauração.
E vai encerrar a Década da Biodiversidade.
Para quem acompanha o “esforço civilizatório” global desse organismo, sabe que a seleção do tema obedece urgência da problemática (um hot issue, como se diz) e exige expertise para dela tratar. Não é marketing ambiental, embora a comunicação exerça um papel chave no processo de conscientizar países, autoridades, instituições científicas e organizações não-governamentais, assim como a opinião pública mundial.
A Década da Biodiversidade aconteceu divulgando estudos e fatos sérios sobre o comprometimento da vida de vários grupos de animais e vegetais, bem como sobre as consequências em ecossistemas terrestres inteiros. Também mobilizou programas e especialistas para fazer inventários e ajudar os países- membro a ter seus sistemas de dados e de monitoramento. Deu suporte a biodatas globais e treinou consultores no mundo inteiro.
Em 2022 celebraremos os 50 anos de Estocolmo, da primeira grande Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida em 1972 – quando a palavra “poluição ” foi cunhada e passou a circular fora dos meios acadêmicos. Daquela reunião nasceu as secretarias e departamentos de combate à poluição em todo o mundo, inclusive no Brasil.
De lá para cá, calcula-se que perdemos 70% dos grandes mamíferos do Planeta, 35% das aves, 30 a 40% dos insetos úteis (encabeçando este grupo as abelhas) e os oceanos estão ficando desertos: além da sobrepesca (quando se coleta mais peixes do que a natureza é capaz de repor), verifica-se o branqueamento dos corais. Apenas 0,1 % dos mares e oceanos são cobertos pelos corais – mas eles sustentam cerca de 25% da vida marinha. Prevê-se que em 2050 teremos mais artefatos plásticos nos oceanos do que peixes.
Um olhar apressado sobre a Década que finda pode dar a impressão de que ela pouco serviu aos seus objetivos. Afinal não está se agravando e atingindo aspectos críticos a morte de animais e a devastação de seus habitats? Incêndios florestais de grandes proporções na Austrália, Estados Unidos e mais recentemente no Brasil dizimaram bilhões de animais e plantas.
A crise climática é o estopim de vários eventos que só fazem piorar e deteriorar a olhos vistos o ambiente global. O que antes era localizado e eventual torna-se frequente, intenso e afeta a todos.
Sim, a crise da biodiversidade é aguda e o fator climático a torna exponencial.
Mas se nos determos sobre as propostas da Década da Restauração, veremos que há uma complementaridade positiva entre elas. Destruímos e precisamos reparar.
Repor e recompor paisagens inteiras, ecossistemas, biomas, ambientes marinhos é uma ambição e tanto. E crucial. Está em jogo não só a vida de outros seres, mas a dos próprios humanos. Não num futuro distante, mas já no presente. Sem as florestas se vão as chuvas, os rios sazonais e a vida que esse complexo sustenta. Sem os fungos e a microfauna os nutrientes não se fixam no solo, os incêndios aumentam sua salinização e sua improdutividade.
Fome e sede à vista: o periscópio não mente.
Restaurar custa muito dinheiro. Num mundo que entrou em recessão econômica por causa da Pandemia do Coronavírus, não será fácil mobilizar os recursos necessários. Mas teremos que buscá-los, remanejar prioridades.
Diferente do passado, quando projetos florestais foram incentivados com finalidade econômica, agora a música é outra. Não se trata mais de plantar florestas energéticas para queimar nas caldeiras, ou eucalipto para produzir celulose: isso é simples e banal.
Trata-se de aplicar a enorme base de conhecimento ecológico que se adquiriu nestes últimos 30 anos. Trata-se de aplicar de verdade a “ecologia da conservação “. Sem dúvida, e pode parecer paradoxal, se é real que a nossa destruição do Planeta acelerou de um lado, de outro é fato que se alargou enormemente o conhecimento sobre como se propaga a vida, sobre as cadeias alimentares e processos de sucessão de plantas, sobre a fitogenética, clonagem e melhoramento de sementes. Sabemos mais, como nunca antes.
E temos a oportunidade, como geração – talvez a última – de empreender este esforço hercúleo de recompor o que destruímos. É ético, é belo, útil e possível.
No próximo texto falarei mais sobre a viabilidade das propostas da nova década e de como com humildade, ciência séria e perseverança poderemos “brincar de Deus”, desta feita para reparar um grande mal.
* Este texto é o primeiro de uma série de cinco que escreverei com exclusividade para o site Envolverde, sobre a Década da Restauração.
*Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.
(#Envolverde)