por Darlene Menconi, especial para a Envolverde –
Pesquisadora da Universidade de Oxford, no Reino Unido, há 15 anos Érika Berenguer passa longas temporadas na maior floresta tropical do mundo. Seu trabalho constitui seguir a linha de fogo, medir a dinâmica dos incêndios florestais, monitorar a terra arrasada. Vem daí sua alcunha de “cientista da desgraça”.
Érika cresceu assistindo documentários de natureza na TV. A Amazônia sempre ocupou um lugar mítico em sua imaginação, e entendê-la virou uma meta de vida. Chegando lá, percebeu que a situação era bem diferente. Existiam vários problemas, o desmatamento sendo o maior deles.
A reviravolta em sua vida ocorreu em 2015. Era um ano de El Niño, o fenômeno climático cíclico e natural que aquece as águas do oceano Pacífico, aumenta as secas na Amazônia e as chuvas no Sul do Brasil. Em razão do aumento na temperatura média da Terra, resultado da emissão crescente de gases de efeito estufa nos últimos 150 anos, os El Niños se intensificaram. Assim como as secas, enchentes e ondas de calor.
Naquele ano de 2015, as áreas de pesquisa que Érika acompanhava há vários anos foram consumidas pelas chamas de um mega incêndio florestal. Ao todo, 1 milhão de hectares viraram carvão e cinzas só no Baixo Tapajós, levando à morte 2,5 bilhões de árvores (2.500.000.000!), diz a bióloga.
“Tive de me despedir das árvores que faziam parte do meu estudo, indivíduos que eu conhecia a história de vida, sabia quanto tempo demoravam para crescer, quando frutificavam, que eu acompanhava há anos”, conta. Desde então, o fogo ganhou cada vez mais espaço em sua pesquisa. “Por mais que seja um espaço de desgraça”, ela pontua.
Floresta úmida em chamas
Problema crescente na Amazônia, os incêndios florestais já consumiram uma área de 120.000 quilômetros quadrados, segundo a pesquisadora. É quase o tamanho da Grécia. Detalhe: só em florestas em pé.
Algo dessa magnitude precisa ser entendido. “E a ciência, infelizmente, entende muito pouco da dinâmica do fogo dentro da floresta. Isso porque até 30 anos atrás, a floresta não queimava”, explica Érika.
Por isso seu trabalho de registrar o impacto das ações humanas, e das mudanças climáticas, é tão importante para realizar projeções e previsões climáticas, como as apresentadas no artigo científico publicado na capa da Nature em 14 de fevereiro de 2024. O estudo de Érika também ajuda a entender os efeitos do fogo, alguns deles irreversíveis, em uma floresta cada vez mais quente e seca.
Dono da maior biodiversidade do planeta, o bioma amazônico situa-se em uma região de clima equatorial úmido, com vegetação de floresta ombrófila densa. Ou seja, não é uma floresta que naturalmente queima.
Os incêndios florestais, afirma Érika, fazem parte do “novo normal climático”. “A Amazônia está tão seca, mas tão seca, que o fogo que vem do desmatamento, das pastagens e do roçado consegue escapar e adentrar a floresta”, ela explica.
Desde os anos 1970 até agora, a temperatura já subiu em 1,5° C em toda a Bacia Amazônica. No Baixo Tapajós, na estação seca, o aumento é de 1,9° C e chove um terço a menos que antes, diz.
Seu veredicto é inconteste: “A Amazônia já vive uma nova realidade climática, o clima já mudou e o fogo escapando floresta adentro é consequência dessas mudanças de clima.”
Cientista da esperança
Sorriso farto, corpo miúdo, a bióloga está constantemente exposta à fumaça e às cinzas em seu trabalho de pesquisa, e essa exposição a deixou doente. Em novembro de 2023, pouco antes de subir ao palco na conferência TEDx Amazônia, em Manaus, Érika acabava de receber o diagnóstico de pneumonia.
O ano de 2023 foi particularmente difícil para ela, assim como o trágico 2015. A combinação do El Niño e das mudanças no clima resultaram em recorde de estiagem em Manaus, e um desolador cenário de seca no Rio Negro, que recuou dezenas de metros de sua margem.
A Amazônia se transformou em uma caixa de fosforo, Érika compara. Basta uma fagulha para causar um desastre de grandes proporções.
A sensação para quem esteve em Manaus naquele período era de estar em uma churrasqueira. A fuligem proveniente dos incêndios florestais que ocorreram na estação seca em vários estados da Amazônia Legal tingiu de cinza o céu. O cheiro de carvão e a fumaça densa ardiam os olhos, a garganta. E a névoa impedia enxergar a uma quadra de distância.
Para onde quer que fosse, Érika era seguida pelo documentarista André Muggiati, que na ocasião acompanhava a cientista em sua rotina de rastrear os impactos do El Niño, da seca e do fogo em florestas amazônicas modificadas pela ação humana. O fotógrafo chamava a atenção para os efeitos da piora da qualidade do ar de Manaus nos episódios de tosse e febre da cientista.
Sempre sorridente, Érika silencia por alguns segundos quando lhe pergunto se ela, afinal, é a cientista da desgraça ou da esperança. Observa o céu da capital manauara, era manhã, mas estava escuro como se fosse fim de tarde, tamanha a espessura da fuligem.
“Olhando pela janela agora, acho que eu sou cientista da desgraça. Mas esse não é o personagem que quero ser. Quero ser cientista da esperança, aquela que consegue construir uma Amazônia sustentável, uma Amazônia livre de incêndios florestais.”
E como fazer isso? Érika diz é possível, mas antes temos de mudar o jeito de olhar. Ainda que ocupe mais da metade do território nacional, a Amazônia é um território distante e desconhecido dos brasileiros.
“A gente cria uma relação de medo com a floresta, em vez de encantamento. Acho que só quando a gente mudar o jeito de semear as ideias sobre a Amazônia na nossa cabeça é que a gente vai conseguir mudar nossa relação com ela.”
O fogo desconhece fronteiras
Existem várias causas para o fogo no bioma amazônico, segundo Érika. Um deles é o fogo utilizado no processo de desmatamento. “O trator de esteira vem, derruba a floresta, que fica no chão durante semanas, meses, dentro da estação seca. Até que ela está tão seca, mas tão seca, que aquela floresta pode ser queimada, e literalmente virar fumaça.” A área então vira pasto, ou plantio.
Outro tipo de fogo é usado no manejo das pastagens. Com o crescimento de pequenas árvores no terreno, de tempos em tempos o pasto é queimado para replantio do capim para o rebanho.
Por fim, há o fogo da agricultura familiar, do preparo do roçado, prática tradicional há “centenas de anos por populações que fazem uso do fogo para sua segurança alimentar”, diz Érika. E explica: “uma vez que uma área bem pequena é desmatada, é cortada, é queimada, essas cinzas são utilizadas como fertilizante para a macaxeira que ali vai crescer”.
Só que em anos como 2023, tempo de seca extrema, e de El Niño, o fogo pode escapar para a mata e causar incêndios florestais, alterando para sempre a dinâmica natural.
Três soluções para prevenção e controle
A bióloga enumera três soluções que, se implantadas de imediato, poderiam diminuir substancialmente a quantidade de incêndios florestais.
A Amazônia não é um bloco monolítico, avisa Érika. Ou seja, não existe uma “bala de prata”, ou solução única para enfrentar os incêndios florestais. O que existe são diversas soluções, em diversas escalas, em diversos contextos, ela pontua. E precisam envolver diferentes atores, desde cientistas, como ela, que fazem projeções climáticas, até economistas, cientistas sociais, antropólogos, brigadistas e os povos que fazem uso do fogo para sua segurança alimentar, diz.
1 – Dar protagonismo às áreas de floresta em pé queimadas. O que não se conhece não impacta governos ou sociedade
De acordo com a cientista, a primeira solução seria dar protagonismo aos incêndios florestais, com a divulgação das áreas de floresta em pé queimadas todos os anos na Amazônia. Assim como é feito com o desmatamento.
2- Criação de um fundo climático emergencial pra atuar nos anos de seca extrema
A segunda solução seria a criação de um fundo emergencial climático para anos de seca extrema.
“As mudanças do clima estão aqui, não vão sair, não vão acabar, mas a gente precisa gerar uma adaptação na floresta e nos povos da floresta. E para isso precisa de recursos financeiros e humanos, que podem vir para a região em anos de seca extrema, para prevenir os incêndios florestais. Veja bem, eu não falei combater. Eu falei prevenir, para não deixar o fogo entrar floresta adentro.”
3 – Criação de uma bolsa de defeso florestal para aqueles que dependem do fogo para fazer seu roçado e garantir a segurança alimentar das famílias
A terceira grande solução, ela conta, envolve justiça climática. É a criação de uma bolsa defeso florestal, para aqueles cuja segurança alimentar depende do uso do fogo para o roçado. A ideia, discutida pela bióloga com outros colegas cientistas, seria de um subsídio nos moldes do seguro defeso, que remunera os pescadores durante a piracema, a época de reprodução dos peixes.
“Em anos de seca extrema, como 2023, que é um ano de El Niño, as pessoas aplicariam para essa bolsa, declarariam quantas tarefas de roçado iriam fazer, quantas sacas de farinha aquilo geraria. Esse custo pode ser dividido ao longo do ano para a pessoa, que então não usaria o fogo, mas não entraria numa situação de insegurança alimentar porque teria recurso financeiro”, resumiu a pesquisadora, sob aplausos da plateia do TEDx, que reuniu quase 500 dos principais especialistas em Amazônia e sustentabilidade do planeta. “Por mais que eu seja uma cientista, a Amazônia ainda é um lugar mítico na minha cabeça. Tem muita coisa que a gente não entende, que a ciência ainda não descreve, não explica”, ela diz. E no entanto, as evidências produzidas por pesquisadores como Érika contam uma história indiscutivelmente real e verdadeira.
Darlene Menconi – jornalista multimídia, especializada em Tecnologia, Sustentabilidade e Liderança Feminina. Participa do Conselho editorial da Envolverde.