Por Dal Marcondes, jornalista e editor do Projeto Envolverde –
Essa pergunta deveria ser respondida por técnicos, pesquisadores e políticos que debatem há anos a regulamentação das redes sociais no País e não chegam a nenhuma conclusão. Isso tornou as redes um universo paralelo, onde a opinião se transforma em fato e o fato uma mera opinião. Tudo isso sob a bandeira da liberdade de expressão.
Vai longe o tempo em que os estados nacionais eram capazes de organizar a economia e as as empresas transnacionais de acordo com suas regras e constituições locais. Algumas dessas transnacionais têm mais dinheiro e poder do que muitos estados. Aquelas que dependem de mercados para a venda de produtos ainda sentem um certo constrangimento em criar uma ruptura com as leis locais. Isso, no entanto, mudou na virada do século com a consolidação da internet como rede global. Nesse admirável mundo novo as grandes plataformas se tornaram universais, longe do alcance de legislações locais com as quais não concordem.
A questão principal é que cada país ou coligação de nações, como a União Europeia, tenta impor sua vontade a empresas que conhecem a hegemonia e a importância que assumiram nas últimas décadas na vida cotidiana de pessoas, empresas, universidades e até governos. Em alguns casos, é como se debatêssemos com nosso fornecedor de oxigênio. Se ele não gostar, corta nosso ar. E exemplo é radical, mas ilustra a sinuca em que nos metermos.
Um caso mais real é a possibilidade de se cortar o acesso da Starlink aos consumidores brasileiros. Acontece que essa empresa é a única que garante o acesso à internet de vastas regiões da Amazônia, com suas cidades e comunidades ribeirinhas e indígenas.
Mesmo que a empresa descumpra ordens da Justiça Brasileira, a decisão de cortar seu sinal para os brasileiros tem um custo social, econômico e político de primeira grandeza.
O debate sobre a regulação das redes antecede em muito a atual crise com Elon Musk e sua rede X. seguiu o mesmo caminho da tentativa de regulação da mídia no Brasil. São coisas diferentes, mas impactadas pelo mesmo discurso da “Liberdade de Expressão”. A grande diferença está em que as mídias são brasileiras (em sua grande maioria) e as redes sociais são transnacionais.
Redes transnacionais e leis locais
Quando a internet começou a se universalizar, no início deste século, havia a impressão de que as pessoas poderiam se beneficiar com o acesso universal a informações e conhecimentos disponíveis em bancos de dados de jornais, universidades, museus e serviços públicos dos mais diversos. Isso seria realmente fantástico.
Porém, dados publicados em abril passado pelo Portal Poder 360, mostram que “mais da metade (57%) dos brasileiros não têm acesso pleno à internet. Somente 22% da população tem conectividade significativa, com acesso amplo e estável”.
A sociedade desconectada
Apesar do estudo mostrar que 84% da população está conectada, isso não significa ter acesso a todos os serviços e benefícios da rede global de computadores. A grande maioria desses acessos se limita planos oferecidos pelas operadoras de telefonia celular que turbinam suas vendas com a oferta de acesso livre a redes sociais com Whatsapp, Facebook, Instagram e outras. Isso quer dizer que um percentual que supera em muito a metade da população do País, só tem acesso a redes sociais, com limitada possibilidade de acesso a sites de informação qualificada ou checagem dos fatos.
Isso sim poderia ser qualificado como censura, a limitação consciente do acesso da sociedade a informações e fatos relevantes para o seu desenvolvimento político, social e econômico.
Em todo o mundo jornalistas e empresas de jornalismo debatem sobre a remuneração dos conteúdos jornalísticos publicados pelas plataformas. Mas não se queixam da censura imposta pelo modelo de negócios das operadoras de telefonia e pelas plataformas que impedem que a grande massa de leitores possa chegar diretamente à fonte das notícias, ou seja, aos sites que primeiramente as produzem e publicam.
Enquanto a grande massa de pessoas não tiver acesso livre à internet, não haverá como combater a proliferação de mentiras que grassa pelas plataformas. A sociedade deve ter o direito de acesso a todo o conhecimento e informações contidas na internet para, assim, se defender de mentiras. Só assim será possível a cada cidadão comprovar que “opinião não é fato, e fato não é opinião”.
A regulação deve ser global
O mundo já resolveu muitos problemas de relações comerciais através de acordos e tratados globais. Está ai para provar a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial, a ONU e muitos outros organismos multilaterais. O único jeito de se criar uma legislação sobre as plataformas que realmente funcione, é se isso for feito através de um tratado global vinculante assinado por países e plataformas, as existentes e qualquer outra que venha a existir. Dessa forma se cria não apenas um tratado, mas também um foro para dirimir questões entre países e plataformas.
Os países devem trabalhar na direção da criação desse tratado, antes que as plataformas adquiram tanto poder que isso não será mais possível de ser atingido. Há exemplos de setores econômicos que conseguiram essa quase imunidade global: a indústria do petróleo, as montadoras de automóveis, as indústrias farmacêuticas e algumas outras.
É preciso retomar a utopia de que a internet pode ser um fator de evolução civilizatória e não o vetor de desagregação social que as grandes redes estão fomentando e potencializando.
Dal Marcondes é jornalista, passou por grandes veículos da imprensa, como revistas Exame, Isto É e Carta Capital e jornais como DCI, Gazeta Mercantil e Terramérica , além das agências de Notícias France Presse, Dinheiro Vivo, Iter Press Service (IPS) e Agência Estado. Desde 1995 atua à frente da Envolverde, projeto jornalístico e de produção de estudos e conhecimentos de caráter Socioambiental. É Mestre em Produção Jornalística e Mercado pela ESPM SP.