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Por Herton Escobar, para o Jornal da USP –
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“Mais pessoas ficarão doentes e mais pessoas morrerão.” Essa é apenas uma das frases usadas por um editorial da revista The Lancet para descrever as prováveis consequências da política de Donald Trump sobre a ciência e a saúde nos Estados Unidos. Segundo a revista britânica — considerada a de maior prestígio do mundo na área das ciências médicas —, as ações anunciadas pelo novo presidente americano nas últimas semanas ameaçam paralisar, ou até mesmo reverter, muitos dos avanços conquistados nas últimas décadas em temas como mudanças climáticas, saúde da mulher, direitos reprodutivos e controle de doenças infecciosas mundo afora.
Desde que voltou ao poder, em 20 de janeiro, Trump vem impondo uma série de medidas restritivas à atividade científica e à autonomia de agências regulatórias e de instituições de pesquisa vinculadas ao governo federal americano; além de ter retirado o país da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do acordo climático de Paris. Entre os órgãos afetados estão os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, em inglês) e os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), que são referência internacional em regulamentação e pesquisa científica na área da saúde. As medidas incluem a suspensão da publicação de relatórios e comunicados, proibição de contato com a imprensa e o congelamento de recursos e programas de pesquisa. Vários bancos de dados e páginas que continham orientações sobre vacinas, vírus e doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo, foram retiradas do ar para serem “revisadas” e garantir que não estejam em desacordo com as diretrizes da administração trumpista.
Palavra proibidas: “gênero”, “LGBT”, “transgênero”, “diversidade” e “inclusão”
Em uma das medidas mais polêmicas, pesquisadores do CDC foram oficialmente instruídos a não publicar relatórios ou estudos científicos que contenham palavras consideradas “proibidas” ou problemáticas pela administração Trump, como “gênero”, “LGBT”, “transgênero”, “diversidade” e “inclusão”. Um e-mail enviado pela direção da agência aos pesquisadores no fim de janeiro trazia até um texto pronto para que eles justificassem os pedidos de retratação de artigos já submetidos para publicação em revistas científicas, dizendo: “Em consonância com a Ordem Executiva do Presidente intitulada ‘Defendendo as Mulheres do Extremismo da Ideologia de Gênero e Restaurando a Verdade Biológica ao Governo Federal’, estou me retirando como coautor desta submissão”.
“A habilidade dos pesquisadores de trabalhar foi severamente limitada ou paralisada completamente. A liberdade de expressão está restringida”, diz o editorial do The Lancet, intitulado “Caos americano: em defesa da saúde e da medicina”, publicado em 8 de fevereiro. Segundo a revista, é imperativo que as instituições de saúde não se deixem amedrontar e confrontem as políticas nocivas do presidente americano. “Este momento é um teste. Como nossa comunidade deve reagir? O resultado imediato tem sido confusão, perturbação e desorientação, mas a resposta não pode ser ditada pelo medo ou pela resignação. Há necessidade de foco, estratégia e — de fato — esperança”, completa a revista, lembrando que essas medidas podem ser contestadas na Justiça e questionadas perante a opinião pública.
“Pesquisadores não devem de curvar”
Os editores do grupo BMJ (abreviação de British Medical Journal), responsável pela publicação de várias revistas científicas de renome na área médica, também se posicionaram em defesa da ciência e do CDC. Em um artigo publicado em 4 de fevereiro, Kamran Abbasi (editor-chefe) e Jocalyn Clark (editora internacional), classificam as medidas de Trump como “censura” e conclamam pesquisadores e publicações científicas a não “se curvarem” a ela.
“É absurdo que o registro científico seja tratado com tamanho desrespeito. É flagrante que a agência de saúde pública de um país, ou qualquer autoridade governamental, exija a eliminação de qualquer terminologia, particularmente terminologia medicamente relevante. Isso equivale à censura de cientistas, violação dos direitos à liberdade de expressão, desumanização de indivíduos LGBT e indiferença para com os contribuintes americanos e seres humanos em todo o mundo que apoiam a pesquisa do CDC e têm o direito de esperar que suas descobertas sejam compartilhadas”, escrevem Abbasi e Clark, que participaram de um evento na Universidade de São Paulo em setembro de 2024 (vídeo disponível no YouTube).
Na avaliação da professora da Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, as medidas de Trump fazem parte de uma estratégia clássica dos governos fundamentalistas, que enxergam a ciência como um empecilho à realização de seus objetivos políticos. “Para mim o fulcro da questão é esse: minar a confiança na ciência e remover a ciência como um obstáculo que vai orientar políticas que são incompatíveis com o discurso político que se deseja implementar”, disse Ventura ao Jornal da USP. Ela faz parte do conselho editorial do BMJ para a América Latina e do comitê que trouxe Abbasi e Clark para o evento na USP.
A ciência se contrapõem ao discurso ideológico
O “problema”, aos olhos dos fundamentalistas, é que a ciência muitas vezes aponta para causas e soluções baseadas em evidências que vão se contrapor a um discurso puramente ideológico ou propositalmente desinformativo.
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Por exemplo: se a política é dizer que as vacinas são perigosas e desnecessárias, mas a ciência comprova que elas são seguras e necessárias, a ciência vira um problema. Se a política é manter tudo aberto e funcionando durante a pandemia, mas a ciência diz que é preciso usar máscara e manter o distanciamento social, a ciência vira um problema. Tanto é que, um dos principais opositores das políticas negacionistas de Trump durante a pandemia de covid-19 foi um cientista: o imunologista Anthony Fauci, então diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID), que faz parte do NIH. O mesmo embate acontece em temas como gênero, aborto, diversidade, mudança climática, conservação ambiental e muitos outros, que mobilizam a opinião pública de forma muito intensa.
Ventura alerta que isso é só o começo, e que Trump chega consideravelmente mais forte para esse segundo mandato. “Ele vem muito mais experiente, mais focado e com muito mais poder, porque ele controla o Parlamento e grande parte do Judiciário também”, diz a professora. “Então ele vai atacar pesadamente desta vez para desmontar as salvaguardas que limitaram a atuação dele no primeiro mandato.” Um objetivo político que, segundo ela, passa pelo controle da ciência e das instituições de pesquisa. O nome do ato presidencial usado como referência para censurar pesquisadores deixa isso explícito ao falar em “restaurar a verdade biológica ao governo federal”. Ou seja, a “verdade biológica” (sobre gênero ou qualquer outro assunto) a partir de agora deverá ser aquela que atende aos interesses político-ideológicos do governo Trump, e não mais aquela que é demonstrada pela ciência ou pela medicina com base em evidências.
As pesquisas e orientações produzidas pelas instituições americanas são uma referência global importante, o que significa que as restrições impostas pelo governo Trump têm implicações internacionais, podendo restringir o acesso de cientistas e médicos a informações científicas e dados epidemiológicos que são relevantes mundo afora. As medidas também terão impacto no Brasil, visto que muitas pesquisas realizadas no País recebem apoio financeiro de instituições ou agências de fomento americanas.
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Jornalista profissional, especializado em Ciência e Meio Ambiente. De janeiro de 2000 a dezembro de 2018 foi repórter do jornal O Estado de S. Paulo, com mais de duas mil reportagens publicadas em formato impresso e digital nesse período, sobre uma grande variedade de temas ligados à ciência, tecnologia, inovação e políticas científicas e ambientais. Desde janeiro de 2019 é repórter especial do Jornal da USP.