Chile: Lei de TV digital fortalece monopólio midiático e acaba com a TV grátis

A nova lei autoriza os donos da TV a cobrar pela metade de suas transmissões que, se supõe, seguirão oferecendo sua habitual qualidade zero, além do futebol.

A questionada televisão aberta do Chile será mais monopólica ainda, não irá melhorar a deplorável má qualidade de seu conteúdo, e inclusive terá de ser paga com a implantação da televisão digital terrestre, segundo a lei aprovada na última quarta-feira, dia 6, pela Câmara de Deputados com 107 votos a favor e 1 contra. A iniciativa, que tramita desde novembro de 2008, passará agora ao Senado.

A legislação sobre a nova tecnologia digital abriu a possibilidade de um debate aberto sobre a democratização da televisão aberta, que surgiu no Chile no começo dos anos 1960 como atividade exclusiva das universidades tradicionais (Católica e Do Chile), mas a nova lei consolida o controle dos atuais donos privados dos negócios da TV. Em análise dos especialistas Chiara Sáez e Jaime Mondría, vinculados ao Observatório Fucatel, “esta lei poderia melhorar o cenário atual, mas ao invés disto, o piora. (…) O projeto de TV digital se tornou cada vez mais benéfico para os atuais grandes canais de televisão, os mesmos que os telespectadores avaliam negativamente”.

Embora já existam muitas emissoras pagas de canais a cabo e satélite, a nova lei autoriza os donos da TV a cobrar pela metade de suas transmissões que, se supõe, seguirão oferecendo sua habitual qualidade zero, além do futebol. O boletim oficial da Câmara anunciou com todas as suas letras que “em relação à autorização de fazer novos negócios, se permitirá às emissoras destinar até 50% da programação a canais de televisão paga”. Para Sáez e Mondría, “este artigo (31 A) contradiz o uso consagrado para as bandas do UHF e do VHF do espectro radioelétrico, que é pensado para o desenvolvimento de canais abertos de televisão”.

As grandes redes atuais da TV tampouco necessitarão competir para obter uma concessão digital, segundo os artigos II e III da lei transitória aprovada pelos Deputados. Mas os legisladores da direita e da chamada “esquerda” (Coalizão de Partidos pela Democracia) concordaram em não outorgar este mesmo direito aos canais regionais, locais nem comunitários que atualmente existem, funcionam e somam mais de 100 emissoras em todo o país. O Observatório Fucatel notou que “estes artigos transitórios atentam gravemente contra o direito de igualdade ante a lei, neste caso dos distintos modelos de televisão existentes no Chile. A lei dá maiores facilidades aos operadores mais fortes e põe mais barreiras de entrada aos mais fracos, aprofundando assim a desigualdade dentro do sistema televisivo”.

“Primeiro perdemos a televisão universitária, depois perdemos a televisão pública e agora perderemos a televisão aberta… Que podemos fazer, então, como cidadania informada e ativa?”, se perguntaram no Observatório Fucatel a socióloga Chiara Sáez, doutora em comunicação e participante do Observatório Internacional de Televisão da Universidade Autônoma de Barcelona, e Jaime Mondría, ator, gestor cultural e ativista cidadão por uma TV digital democrática.

TV = Censura, autocensura e mediocridade

O debate parlamentar de mais de dois anos sobre televisão digital foi quase clandestino, celebrado entre as quatro paredes do Congresso que funciona em Valparaíso. Não é surpreendente a opinião cidadã chilena estar absolutamente desinformada sobre questões fundamentais que dizem respeito a sua própria existência, como sua crescente alimentação com produtos transgênicos que consome sem informação nem controle das autoridades. A televisão, junto com os grandes jornais diários, participa ativamente na desinformação. Privilegia notícias banais, como o sucesso do último super celular digital ou o show do grupo estrangeiro tal e qual, mas oculta notícias reais e importantes como a greve de 32 dias, até 6/11/2010, dos trabalhadores da cadeia das Farmácias Ahumada SA (FASA), da qual Piñera foi acionista e é uma importante anunciante nos meios.

Os atores que trabalham na televisão também se queixam do silêncio que faz invisível o conflito que mantém com as emissoras pelo não cumprimento de uma lei de 2008 que obriga os canais a pagar pelas reprises de suas atuações. Precisamente na quinta-feira, 7 de abril, realizaram uma greve convocada pela Chile Actores, organização sindical presidida por Esperanza Silva. O grupo já apresentou demandas civis contra a televisão pública TVN, Canal 13, Mega e Chilevisión e hoje não comparecerão às gravações das novelas, como advertência. Claudio Arredondo, da Chile Actores, explicou: “Esta é uma lei aprovada em 2008 e não foi aplicada. A lei autoriza a Chile Actores a cobrar até 2% da renda bruta por toda exibição pública de uma produção onde esteja presente um ator (…) Nós queremos que seja cumprida a lei…”

Como contrapartida, a propaganda do governo tem como caixa de ressonância todos os canais de televisão aberta, sem exceção, sem excluir sua versão a cabo. A mega produção no estilo reality show do resgate transmitido ao vivo dos 33 mineiros cujo protagonista e estrela foi Piñera não foi responsabilidade de nenhum diretor da TVN, o canal público que liderou a transmissão. Foi um descarado ato do governo com táticas goebbelianas. A transmissão desta impactante cena oficial teve como diretor geral de televisão Reynaldo Sepúlveda, encarregado de toda transmissão de eventos nos quais participe Piñera desde seu cargo na Secretaria de Comunicações da Moeda. “Ficou muito evidente a manipulação das imagens para favorecer os planos do primeiro mandatário e demais autoridades presentes, convertendo a transmissão em uma cadeia nacional que renderia nutritivos frutos à imagem do Executivo e seus rostos mais protagonistas”, resenhou o Observatório Fucatel. Inclusive no domingo 22 de agosto, quando foi sabido que os mineiros estavam todos vivos, os meios e jornalistas que cobriram in situ na Mina San José fizeram “um pacto de cavalheiros” com o governo para atrasar a entrega da notícia e dar tempo para outorgar a Piñera a exclusiva, sendo que este chegou atrasado para encenar e ler o famoso papel escrito debaixo da terra: “Estamos vivos os 33 no abrigo”.

O falso “progresso” da TV digital chega a um país onde os partidários de Piñera e amargos defensores da versão neoliberal do atual capitalismo em crise – Augustín Edwards e Álvaro Saieh – controlam os principais jornais diários lidos pelos chilenos, enquanto o grupo Luksic controla 66,6% do Canal 13, que em seu início foi operado pela Pontifícia Universidade Católica e, portanto, o outro terço pertence ao Vaticano. O Chilevision Canal 11, que nasceu como Canal 9 da Universidade do Chile, terminou sob o controle de Sebastián Piñera, que o vendeu ao grupo Times Warner CNN. O atual Canal 9 Mega, que estava destinado à Universidade Técnica do Estado, hoje USACH, e não conseguiu ir ao ar devido ao golpe militar contra Salvador Allende em 1973, caiu nas mãos do grupo de Ricardo Claro, cujos herdeiros acabam de se associar com o grupo Luksic na Companhia Sudamericana de Vapor, empresa símbolo deste holding cujos barcos foram utilizados para transportar prisioneiros políticos ao campo de concentração de Chacabuco, no deserto próximo de Antofagasta. O outro canal aberto de alcance nacional, La Red, pertence ao mexicano Angel González, enquanto a TVN tem um diretório que reflete a composição política do Congresso, onde na prática deixou de existir algo que seriamente possa chamar-se de oposição ao governo.

Que fazer? Gaste seu dinheiro com outra coisa

A pergunta óbvia – que fazer? – surge enquanto a televisão pressiona os cidadãos para que consumam mais e agora embarquem na compra a prestações de televisores novos, sem abordar em nada o caráter exclusivista que está adquirindo a lei de televisão digital a favor dos monopólios da informação. “Em primeiro lugar – recomendam Chiara Sáez e Jaime Mondría – escreva aos parlamentares de seu distrito pedindo-lhes que não aprovem a lei assim como está. Os artigos 31 A, II e III transitórios são somente a ponta do iceberg de um projeto de lei orientado a consagrar um sistema televisivo cada vez menos democrático e diverso. Em segundo lugar, informe-se dos conteúdos da lei, dos debates parlamentares e das posições críticas que tomaram organizações da mídia e organizações cidadãs, com as quais o projeto começou a ser elaborado, ao menos há mais de um ano”.

“Se o anterior não funciona, não invista num novo aparato para ver a mesma coisa que hoje. A televisão aberta no Chile é financiada principalmente através da publicidade: os canais vendem audiências aos anunciantes. E para isso necessitam que a classe média (o grupo que consome em maior número) veja televisão (porque os grupos de menos renda tampouco lhes interessam). Se você como classe média ou classe baixa pensa que com esta lei a oferta televisiva seguirá sendo a mesma, rebele-se frente a este engano e gaste seu dinheiro em outra coisa”.

*Ernest Carmona, jornalista e escritor chileno. Publicado originalmente em http://alainet.org/active/45666. Tradução de Cainã Vidor. Foto por http://www.flickr.com/photos/schmilblick/.

**Publicado originalmente na Revista Fórum.