Embora a sigla ONG tenha sido aprovada em 1946 na Ata de Constituição da ONU, o crescimento acirrado no Terceiro Setor no Brasil é fenômeno nascido na década de 90 e marcado, para alguns positiva para outros negativamente, pela assunção de algumas atribuições do governo pela inicitiva privada. Em 2006 o número de organizações da sociedade civil sem fins lucrativos era, no país, 260 mil, em 2008 já eram mais de 300 mil (um terço atuantes apenas na Amazônia), hoje, segundo a ABONG ( Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais), são 338 mil.
A importância desse grupo de organizações, desse setor, é denotado não apenas pelo seu impacto social e ambiental propriamente dito, mas por sua representatividade na economia brasileira: trata-se de um mercado bilionário e que emprega mais de 1,5 milhão de pessoas. Apesar disso, a própria ABONG destaca como ponto de atenção, a partir do último suplemento sobre Fundações e Associações Privadas Sem Fins Lucrativos no Brasil, a precariedade ainda marcante da estratégia de financiamento dessas organizações.
De fato, na maior parte dos casos, não se pode falar propriamente de “estratégia” de financiamento. Estratégia diz respeito à seleção dos meios mais adequados para que determinado objetivo seja alcançado; as mais diversas definições tangenciam a ideia de construir o futuro tendo em vista um fim específico. O que acontece, sabemos, é que a maior parte das organizações luta dia a dia pela sobrevivência, para pagar as contas básicas e não deixar que sua estrutura mínima desmilingua-se. Portanto, a captação de recursos, evidente, se faz de forma desoredenada, aflita, disponibilizando a causa para qualquer possibilidade de obtenção de capital financeiro, por vezes vendendo-a por demais barato.
Planejar o futuro acaba por ser privilégio de um grupo pequeno em meio a esse universo de organizações. Isso porque trata-se de um conjunto muito diverso, não apenas pelas causas defendidas, por seus formatos jurídicos, mas também pelo acesso a recursos financeiros. Podemos dizer que à imagem e semelhança da sociedade brasileira, há uma imensa desigualdade entre essas organizações e, ao contrário do que se pode pensar, o associativismo não costuma ser caminho fácil para levantar capital.
O paradoxo é que enquando, segundo o Ministério de Planejamento, em torno de 1,29% do PIB é destinado às ONGs, 55% das organizações acessam esses recursos, a maior parte de forma tímida. A concentração se dá entre poucas e grandes organizações, já bem estruturadas. Em paralelo a isso, sabemos que os recursos de fontes estrangeiras vêm deixando o país, fonte que representava, em 2006, 60% do capital para manutenção dessas organizações.
Essas são algumas pinceladas do que se conforma um cenário árido para a chamada sustentabilidade organizacional, utopia ainda para maior parte do setor. Se é preciso estrutura para acessar recursos, é necessário capital para estruturar-se; parte-se de uma equação simples, são as pessoas que fazem a organização funcionar e crescer, se a média salarial nessas organizações é baixa (cerca de 3,8 salários mínimos) e ainda há muito trabalho voluntário, militante e precarizado, como se pode esperar uma alta eficiência na gestão de recursos combinado a alto impacto social demonstrado por indicadores claros e objetivos? Tudo isso é o mínimo requerido pelos maiore doadores e investidores.
Soluções criativas para tal equação são mais que bem vindas. As organizações lançam-se a elas ao cansarem pela desgastante luta pela sobrevivência e buscarem a sustentabilidade. As atividades empresariais sociais enquadram-se nessa busca: iniciativa que, se bem sucedida, gera recursos para os custos básicos e / ou para a estruturação e expansão da organização, fortalecendo sua autonomia e permitindo a continuidade de sua atuação social, sem trancos e barrancos, por períodos mais longos que o de projetos específicos.
Ao mesmo tempo em que esse caminho parece um pouco mais democrático, acessível para grande parte das organizações, para que seja bem sucedido são necessárias, além da iniciativa de uma liderança dentro da organização, ferramentas de planejamento e de gestão empresarial. Elas são a base para que os riscos desse caminho sejam contornados ou administrados. O plano de negócios deve ser apontado como uma das mais relevantes por levar a equipe à pesquisa, à explorar o ambiente em que se coloca o serviço ou o produto oferecido, e lançá-la ao planejamento de longo prazo. Uma observação interessante é que por vezes esse é um esforço que abre as portas, em um momento seguinte, para o planejamento estratégico da organização como um todo.
Sabemos que o plano de negocios é bem específico para cada projeto, mas há diretrizes que podem ser seguidas, em geral, como guia para esse trabalho e que há algumas melhores práticas de grande valia. A partir da experiência do NESsT no Brasil, e na América Latina, no apoio e capacitação de organizações na elaboração e implementação de atividades empresariais sociais, pudemos identificar 10 norteadores chave para o desenvolvimento de um plano de negócios consistente, desde a concepção da ideia até a confecção do documento.
Consenso e coerência: visão e meta claras em relação ao negócio que se pretende empreender são fundamentais para que se possa efetivamente compartilhá-la com os diversos atores da organização (diretoria, equipe, voluntários, doadores, parceiros e beneficiários). Outra fonte de coerência requerida é o alinhamento da ideia da empresa social em relação à missão e às ações da organização social. Por fim, é necessária a coerência e coesão do plano em si, isso é, entre os capítulos do estudo, por exemplo, entre as informações de mercado e a análise financeira.
Preparação como equipe: alinhado e consensado o projeto de negócio social, é recomendado que os profissionais envolvidos busquem oportunidades de capacitar-se em novas ferramentas e habilidades gerenciais relevantes para o desenvolvimento e implementação da ideia. Ao longo da elaboração do plano de negócios e essa capacitação pode ser encontrada junto a outras organizações. Isso não apenas porque determinados instrumentos e práticas da gestão do negócio podem der diferentes dos em uso na organização, mas também porque é interessante ter uma visão de fora ao longo do processo. Profissionais experientes no tema podem corrigir erros corriqueiros na elaboração do projeto e podem orientar em práticas simples, que fazem toda a diferença, como a construção modular da atividade, com elaboração por etapas para diminuir os riscos e o impacto financeiro no caso das premissas falharem.
Demonstrar o potencial de mercado: a demanda. O estudo de mercado é o coração do processo de análise e avaliação da atividade empresarial social e apenas a partir dela a equipe poderá ter uma noção embasada sobre o potencial da ideia de contribuir tanto para os objetivos sociais como alcançar as metas financeiras da organização. Portanto, o estudo de mercado deverá apontar, claramente, se há demanda e se existe a oportunidade de oferecer um produto ou um serviço diferenciado, com atributos que serão reconhecidos pelos potenciais clientes como vantagem em relação aos concorrentes.
Análise de cenários: o potencial de alcançar de o empreendimento alcançar ou contribuir com a sustentabilidade deve ser demonstrado inclusive em cenários pessimistas. Em geral, quem avalia planos de negócios prefere o realismo e o conservadorismo ao otimismo. Um projeto que não considera bons e maus cenários não é realista. Os diferentes cenários devem mexer com as principais variáveis de viabilidade do empreendimento, como taxa de crescimento, diferentes níveis de preço, alterações nos principais custos, volume de vendas, etc.
Evidência: as conclusões e apontamentos precisam ser fundamentados em informações objetivas, recolhidas não apenas dentro, mas também fora da organização. Não é necessário dizer que a equipe conhece o mercado e que ele está crescendo. É preciso indicar as fontes dessa percepção, o histórico de crescimento e as bases para a projeção de que essa tendência permanecerá real nos próximos meses ou ano. A Rede de Assessoria Empresarial do NESsT é formada por executivos e empresários que ao analisarem planos de negócios questionam cada colocação, não pela desconfiança em relação aos proponentes, mas com foto na consistência da proposta.
Equipe e liderança: ambos elementos são chave para qualquer empreendimento, seja qual for sua natureza, incluindo as atividades empresariais sociais. Tais fatores recebem atenção na análise da viabilidade de um plano de negócios. As pessoas são os quem fazem a organização e o empreendimento reais, acontecerem, e uma liderança com energia para enfrentar desafios é importante guia e como mobilizador da equipe. Boa parte das possibilidades de sucesso do plano de negócios são determinadas pela equipe envolvida, assim como pela relação entre as pessoas entre si, com a ideia e com a liderança. É fundamental que tempo dos profissionais seja alocado para o planejamento do negócio e que pelo menos uma pessoa seja responsável pela coordenação da pesquisa de mercado.
Cultura e capacidade de empreender: a criatividade e a tolerância ao risco são importantes. Por exemplo, ser criativo para pesquisar e usar suas habilidades em rede para obter determinada informação pode fazer toda a diferença. Tais elementos são especialmente relevantes nas organizações sociais em que informações precisam ser levantadas sem custo ou com baixo custo. A atuação em redes é um fator muito positivo para a capacidade de empreender.
Apoio externo: considerando o justo orçamento da maior parte das organizações, contar com apoio externo para o desenvolvimento do plano de negócios concentra relevância. Por exemplo, é excelente poder envolver estudantes de escolas de negócios como voluntários na elaboração da pesquisa de mercado já que contam as habilidades requeridas, com o estusiasmo e, comumente, com disponibilidade de engajar-se em projetos mais curtos como este.
Impacto na missão: o objetivo maior de uma atividade empresarial social é contribuir com o impacto positivo da missão, potencializando-o; sua contribuição nesse sentido precisa ser constantemente acessada. Um negócio relacionada à missão que restringe-se, financeiramente, ao ponto de equilíbrio, pode ser aceito se propiciar que objetivos relacionados à missão sejam concretizados. Por outro lado, um empreendimento financeiramente rentável com prejuízo à missão não deveria ser implementado.
Análise de risco: as atividades empresariais sociais acrescentam um tipo distinto de risco aos já intrínsecos à organização. Eles precisam ser reconhecidos e considerados no planejamento da implementação do empreendimento; precisam ser apontados, bem como as ações de mitigação, no plano de negócios. Além dos riscos típicos, envolvidos em qualquer novo negócio, há os riscos relacionados à missão social.
Portanto, é ainda mais importante prevê-los na medida do possível e obter e manter o apoio e a participação dos atores chave no planejamento e na administração dos riscos uma vez que se tornam reais.
Vale reforçar algo que permea todas esas diretrizes: as pessoas são sempre a alma do negócio (e da organização). Portanto, a atenção na projeção do tempo de cada um para a gestão da atividade empresarial pode evitar surpresas para a equipe, bem como sobrecarga e desgaste. O desenvolvimento de um plano de negócios é etapa crucial para lançar-se a uma atividade empresarial social viável e consistente, prepare-se para isso, considere a energia que será investida nessa empreitada e que grande parte das outras atividades, como o próprio esforço de captação de recursos, não poderão ser deixadas de lado nesse percurso.
A partir daí, é iniciar a empreitada! Junte às ferramentas de trabalho uma pitada de lideranças e duas de criatividade.
* Mariana Nicolletti é Gerente de Desenvolvimento de Negócios Brasil da NESsT. E-mail: [email protected].
** Publicado originalmente no site EcoD.