Em agosto de 2004, a Libyan National Oil Company organizou a venda de 15 licenças de prospecção de petróleo em leilão. O evento atraiu uma multidão de interessados: 120 companhias manifestaram seu interesse, inclusive várias gigantes britânicas e dos Estados Unidos que haviam deixado a Líbia sem nunca terem sido nacionalizadas.
Em 1986, o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, chamou o coronel Muammar Kadafi de “cão louco do Oriente Médio”, e enviou a 6ª Frota para bombardear a Líbia e impor-lhe um severo embargo petroleiro. O homem tinha, então, a imagem de um pária… Contudo, 20 anos depois, Kadafi conseguiu trazer seu país de volta ao pelotão de frente dos exportadores de petróleo bruto graças às grandes companhias petroleiras norte-americanas, entre outras. Como tão notável façanha foi possível?
Em 1951, a Líbia, que por muito tempo foi chamada de “reino do vazio”, tornou-se independente em meio a uma pobreza avançada. Ela era fruto da união anacrônica de um imperialismo britânico em pleno declínio com uma confraria muçulmana saariana, a Sanoûsiyya (da qual o rei era originário). O seu único produto de exportação era o ferro velho recuperado dos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial.
Geólogos italianos, nos anos 1930 e, posteriormente, especialistas do exército dos Estados Unidos sugeriram a presença de petróleo no subsolo do vasto país (1,7 milhão de quilômetros quadrados).
Criada em 1955, a lei que regulava a exploração do petróleo rompeu a regra de uma concessionária única por país, que até então vigorava no Oriente Médio: a Anglo-Iranian, no Irã, a Aramco, na Arábia Saudita, ou ainda a Irak Petroleum Company, no Iraque. Na Líbia, as concessões foram limitadas no tempo (cinco anos) e no espaço. Quando o petróleo começou a jorrar, essa decisão revelou-se apropriada.
A exploração começou a todo vapor, envolvendo uma dezena de companhias. Em 1961, a Exxon inaugurou o terminal de Mars El-Brega. Em menos de cinco anos, a produção superou o milhão de barris/dia, desempenho inédito na época. Dezenove companhias, entre as quais Exxon, Shell, BP e ENI, operavam na região em 1962. O seu número passou para 39 em 1968. Um novo modelo petroleiro havia nascido, o qual acabaria vingando aos poucos no restante do mundo.
O coronel Kadafi – que assumiu o poder em decorrência de um golpe de Estado, em 1º de setembro de 1969 – estava decidido a obter o preço mais alto pelo seu petróleo bruto. Para tanto ele reduziu pela metade, de modo autoritário, a sua produção diária com o objetivo de pressionar e obter aumento dos dividendos para o Tesouro. A Exxon podia substituir o petróleo bruto local pela sua produção em outros países. Mas a Occidental, que não tinha nada fora da Líbia, era o elo fraco da corrente e assinou sua rendição.
Sob pressão do governo líbio, o cartel, que mantinha os preços do petróleo congelados há muito anos, capitulou em setembro de 1970. Com isso, os preços e os impostos aumentaram em 20% de uma só vez.
Como bons discípulos do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, Kadafi e seu Conselho da Revolução estavam decididos a recuperar as riquezas nacionais. Mesmo com os riscos de experiências infelizes como a do primeiro-ministro iraniano Mohammad Mossadegh, expulso do poder pela CIA em 1953 por ter ousado enfrentar a Anglo-Iranian; ou a do coronel argelino Houari Boumedienne, que teve de enfrentar em 1971 um embargo oneroso após ter nacionalizado as jazidas das companhias francesas.
Em dezembro de 1971, a British Petroleum (BP) foi nacionalizada. O pretexto era tênue, mas os interesses em jogo eram consideráveis: a BP detinha a maioria (das ações?) da jazida de Sarir, a mais importante do país. Após uma querela jurídica tumultuosa, um acordo foi concluído: a Líbia retomou o controle da totalidade da jazida.
Toda vez que ocorria uma disputa dessa natureza, os mesmos fatos aconteciam: os técnicos estrangeiros eram submetidos a agressões e a todo tipo de assédio, o que reduziu o ritmo do trabalho nas plataformas, prejudicando gravemente a produtividade. Fartas dessa situação, as companhias Gulf, Philips, Amoco, Texaco e Socal, entre outras, abandonaram sucessivamente suas jazidas e deixaram o país. A companhia pública, a Libyan National Oil Company (LNOC), formada na escola norte-americana, retomou a exploração sem muitas dificuldades. Em dez anos, a renda do país foi multiplicada por cinco, até alcançar US$ 10 mil per capita em 1979.
Surgiram então dificuldades no plano político. Em dezembro de 1979, o Departamento de Estado Norte-Americano acusou a Líbia de apoiar o terrorismo, entre outros motivos, pela ajuda que dera a movimentos palestinos radicais. Pouco depois, Washington fechou a sua Embaixada em Trípoli e proibiu os norte-americanos de comprar petróleo líbio. Por fim, em junho de 1986, a proibição foi estendida para todo e qualquer comércio.
Os atentados contra um Boeing 747 da Panam, em 21 de dezembro de 1988, e contra o DC10 da companhia francesa UTA, em novembro de 1989, resultaram em sanções internacionais que iriam prejudicar a indústria petroleira líbia. Enquanto a LNOC não teve dificuldade para abrir novos mercados na Europa, na Turquia e no Brasil para substituir aquele perdido com os Estados Unidos, o embargo derrubou de vez seus planos de desenvolvimento na exploração, na petroquímica e na produção de gás natural. Diante da impossibilidade de atrair os capitais ocidentais, a tecnologia, o know-how e os equipamentos “made in America”, os grandes projetos foram suspensos.
A jogada de Kadafi
O período de 1992 a 1999 foi particularmente sofrido. O crescimento da economia desmoronou (+ 0,8% por ano), enquanto a renda per capita diminuiu 20%. O descontentamento foi crescendo, revoltas foram fomentadas, entre outros, na região da Cirenaica, enquanto as tentativas para derrubar o regime foram se multiplicando. Já não era sem tempo para o coronel Kadafi sair de cena. Então, passando por cima de todo e qualquer escrúpulo, ele entregou às autoridades britânicas seus próprios agentes acusados no atentado à Panam, indenizou com gorda quantia as 270 vítimas (e deu um pouco menos para as 170 vítimas do DC10 da UTA). Após os ataques de 11 de setembro de 2001, Trípoli alinhou-se atrás de Washington, juntando-se aos partidários de um antiterrorismo islâmico sem meio termo. Por fim, em 2003, alguns dias depois da entrada dos blindados norte-americanos a Bagdá, Kadafi renunciou publicamente a dotar seu país de armas nucleares. Em 13 de novembro de 2003, as últimas sanções internacionais em vigor foram suspensas, o que abriu caminho para a retomada da atividade petroleira.
Kadafi sonhava duplicar rapidamente a produção, até alcançar mais de três milhões de barris/dia, o que lhe permitiria equiparar-se ao Irã e tornar-se um membro influente da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), o cartel que orienta os preços dos “ouro-negro”. Em agosto de 2004, a LNOC organizou a venda de quinze licenças de prospecção em leilão. O evento atraiu uma multidão de interessados.
Cento e vinte companhias manifestaram seu interesse, inclusive várias gigantes norte-americanas e britânicas que haviam deixado a Líbia em 1986 sem nunca terem sido nacionalizadas. Onze dos quinze blocos foram atribuídos a norte-americanas (Occidental, Amerada Hess, Chevron, Texaco). A prioridade do governo era associar mais uma vez as companhias petroleiras dos Estados Unidos à sua indústria, em detrimento de sociedades europeias como a Total, que o haviam apoiado durante o período das sanções.
De onde vem esse fascínio recíproco e duradouro entre as companhias, das menores até as maiores, e um país tão difícil para elas quanto a Líbia? O seu petróleo é de excelente qualidade, e as suas jazidas ficam próximas dos centros de refino europeus, entre os mais importantes no mundo. Atualmente o petróleo líbio representa cerca de 15% do consumo da França e menos de 10% daquele da União Europeia.
Em 1960, as “majors”, em sua maioria anglo-saxônicas, controlavam a maior parte da produção não comunista. Hoje elas foram substituídas pelas sociedades nacionais dos países produtores. Daqui para frente proprietárias do subsolo, elas controlam seu acesso, ainda que precisem das companhias internacionais para viabilizar uma fase essencial da atividade petroleira: a exploração e a prospecção de novas jazidas.
* Jean-Pierre Séréni é jornalista.
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique Brasil.