Debate no Instituto de Ciências Biomédicas aponta vantagens e desvantagens do uso dos alimentos geneticamente modificados, que ainda divide a comunidade científica.
É seguro consumir alimentos transgênicos? As pesquisas disponíveis até o momento esclarecem definitivamente quais os riscos à saúde humana trazidos por esses organismos geneticamente modificados? Alimentos produzidos por outros sistemas agrícolas que não utilizam os transgênicos também podem causar prejuízos? Como a informação chega à sociedade, de tal forma que os cidadãos possam fazer escolhas conscientes?
Questões como essas foram levantadas no debate “Utilização de Organismos Geneticamente Modificados”, promovido por alunos da disciplina Debates Atuais em Ciências Biomédicas, da pós-graduação do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), realizado no dia 26 de abril. O debate reuniu duas visões opostas: para Rubens Onofre Nodari, professor titular do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e ex-gerente de Recursos Genéticos do Ministério do Meio Ambiente na gestão de Marina Silva, o uso dos transgênicos coloca em risco outras atividades agrícolas, e ainda é prematuro afirmar que a tecnologia é segura. Já Marcelo Gravina de Moraes, professor associado da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma que existem trabalhos científicos publicados no mundo inteiro que garantem o uso seguro dos transgênicos, e que outras formas de agricultura também utilizam defensivos ou insumos que podem ser considerados prejudiciais à saúde.
De um lado e de outro, citações de artigos científicos em publicações conceituadas e argumentos embasados em pesquisa e trabalhos de campo, além de alertas quanto aos muitos fatores envolvidos no debate. Nodari, por exemplo, abriu sua exposição apresentando-se como docente de dedicação exclusiva à UFSC, afirmando que jamais prestou consultoria ao setor privado e que todos os financiamentos que obteve, no Brasil ou no exterior, são de órgãos públicos de fomento. Usou estas credenciais para dizer que “é impossível fazer biossegurança sem independência acadêmica”. Também fez questão de enunciar sua visão de que o ambiente deve ser tratado como “bem comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”.
Gravina, por sua vez, assinalou que a ciência é apenas um dos aspectos da discussão, permeada por interesses ligados a questões econômicas (como produtividade), ambientais e sociais. Há também componentes comerciais, ideológicos e até religiosos no imbróglio, além de muito desconhecimento.
“Tecnologia imprecisa” – Rubens Nodari criticou a falta de clareza nas pesquisas das empresas que trabalham com transgenia. Em relação a algumas sementes e variedades, apontou, não se encontram artigos publicados. “Por quê? Uma das razões é a baixa qualidade”, diz. “O debate acadêmico fica estéril porque a informação não chega à sociedade.” A ausência de controle leva a que não exista clareza sobre os efeitos dos produtos no organismo.
O professor da UFSC também argumentou que o antigo pressuposto de que um gene alteraria apenas uma proteína foi derrubado. “Estudos mostram que estes genes não afetam apenas uma característica. As proteínas expressas são distintas”, afirma. Uma experiência com ervilhas nos Estados Unidos mostrou que a transgenia pode tê-las tornado alergênicas e, portanto, mortais para parte dos eventuais consumidores suscetíveis àquela alergia. A variedade teve que ser abandonada.
Nodari levanta também problemas relacionados ao manejo das culturas. Se a utilização de sementes transgênicas evita algumas pragas, pode favorecer o surgimento ou expansão de outras. Um artigo publicado em 2008 afirma que abelhas alimentadas com pólen de plantas de variedades Bt já não indicam a direção correta do caminho às demais quando voltam à colmeia. “Elas fazem uma dança punk”, ironizou o professor. “Estamos falando aqui de uma mudança de comportamento.” De acordo com o docente, dezenas de artigos listam efeitos na biodiversidade causados pelo milho Bt. Um deles é que o pólen pode ser carregado pelo vento por quilômetros, afetando plantações que não utilizam transgênicos.
Os agrotóxicos são outro capítulo perigoso, diz Nodari. Segundo o professor, com o uso dos transgênicos cresce o consumo de pesticidas, quando a promessa inicial era o contrário. Além do grão, o agrotóxico vai parar na água que todos utilizamos. Até no leite materno estas substâncias estão mais presentes, aponta.
“Não posso ser contra a tecnologia”, afirma o professor. “Temos é que saber se a tecnologia está pronta para ser usada. A dos transgênicos é imprecisa e ainda não sabemos os efeitos nos organismos não alvos. Se eu não quiser comer uma toxina mortal a um inseto, tenho este direito. A perversidade da tecnologia é quando ela afeta os que não querem utilizá-la.” De acordo com Nodari, o que os pesquisadores estão descobrindo é que ainda sabem muito pouco sobre o assunto, o que justifica manter o princípio da dúvida. “Temos que proteger o interesse maior do cidadão”, considera.
Nodari lembrou uma diretriz apresentada pela ex-ministra Marina Silva à sua equipe, segundo a qual uma tecnologia sempre precisa conviver harmoniosamente com outra. No caso dos transgênicos, alerta o professor, o seu uso coloca em risco outras formas de agricultura.
Qualidade – Marcelo Gravina de Moraes, da UFRGS, ressalta que a biotecnologia já está em praticamente todos os produtos industrializados que consumimos. “Vamos rotular tudo?”, pergunta. A transgenia é a tecnologia agrícola que mais cresce no mundo, e o Brasil é o segundo produtor mundial de transgênicos em área utilizada, mas não está entre os maiores consumidores – estes são os países mais desenvolvidos, especialmente da Europa.
Quanto aos agrotóxicos, Gravina afirma que também há estudos que demonstram diminuição de uso em transgênicos. “O problema não é de ser transgênico ou não, é de mau uso.” O professor da UFRGS citou um trabalho realizado por 50 grupos de pesquisa na Europa ao longo de dez anos – entre 2001 e 2010 –, que concluiu não haver evidência de riscos à saúde humana com o consumo de transgênicos. “É importante que os trabalhos que questionam estsa segurança possam ser reproduzidos”, salienta.
“Tudo antes da transgenia era seguro? Está sendo comparado com o quê? Esta é a minha incompreensão. Quem dera conhecêssemos sobre outras áreas de alimentos o que já conhecemos sobre os geneticamente modificados”, diz.
Gravina afirma que a legislação brasileira para o setor segue parâmetros europeus e é mais rígida do que em lugares como Estados Unidos e Argentina. O rigor dos órgãos no Brasil, como a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio), ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, leva a que, em alguns casos, os processos de aprovação sejam muito longos – há exemplos em que foram necessários sete anos. “Com esse tempo causou-se o sucateamento de empresas e instituições de pesquisa. Nós, universidades e pesquisadores, fomos penalizados”, lamenta. Esta situação, de acordo com o professor, pode fazer com que o Brasil venha a importar transgênicos de países como Índia e China, que já estão muito adiantados com produtos como beterraba, arroz, alfafa, tomate e batata. “Os processos não podem ser impeditivos às descobertas nacionais”, afirma.
Gravina defende que não pode haver absolvição total nem condenação total do uso da transgenia, e que a análise precisa ser feita caso a caso. No Rio Grande do Sul, por exemplo, 98% da soja plantada já é transgênica. “Será que todos esses produtores iriam querer perder dinheiro?”, questiona. O agricultor que não quiser utilizar a tecnologia pode fazê-lo.
Um ponto fundamental, na visão do professor, é que o aumento da população da Terra – dos atuais sete bilhões para oito bilhões em 2030 e nove bilhões em 2050 – exigirá maior produção de alimentos em áreas não muito diferentes das atuais. “Ou vamos querer plantar na Amazônia, no Cerrado, na Mata Atlântica?”, pergunta. A situação é agravada pelo fato de que essa maior produção de alimentos terá que se dar em condições desfavoráveis: classes médias crescentes e mais ávidas por consumo em muitos países, mais competição por terras agricultáveis, escassez de água e energia, efeitos das mudanças climáticas. Nesse cenário, os transgênicos ofereceriam condições de maior produção em menor área.
Gravina diz que existem tecnologias da transgenia que poderiam ser utilizadas em outras formas de agricultura, inclusive a orgânica. Mesmos estas modalidades, porém, têm seus riscos. De acordo com o professor, no Brasil o índice de microtoxinas por fungos presentes nos alimentos é alarmante. No caso do milho, estima-se que metade da produção do país – venha de lavoura grande ou pequena, transgênica ou não – esteja contaminada por essas microtoxinas. No Rio Grande do Sul, existe uma linha orgânica que utiliza sulfato de cobre para controle de doenças. “É um metal pesado. Eles acham que não faz mal, mas eu acho que cobre é um problema”, diz. “Deixo de consumir os produtos orgânicos por causa disso? Absolutamente. Acho que eles têm grande qualidade. Estou trazendo este tópico para mostrar que não existe solução mágica. A agricultura orgânica pode deixar de usar alguns produtos que causam determinados problemas, mas outros vão florescer.”
A qualidade dos alimentos deve ser a preocupação principal, na visão de Gravina. O professor da UFRGS salienta, entretanto, que ela depende, entre outros fatores, da contaminação por toxinas e do nível de agrotóxicos utilizado – variáveis que nada têm a ver com transgenia. As tecnologias não são excludentes, considera. “Nunca se desenvolveu tanta ferramenta para analisar qualidade de alimentos quanto com os transgênicos. Vamos aplicar estas tecnologias aos alimentos de uma forma geral. Talvez venhamos a descobrir coisas surpreendentes no meio do caminho.”
“O limite do diálogo é o seguinte: no dia em que deixarmos de usar ausência de evidência como evidência de ausência, podemos conversar.” Esta frase de Rubens Nodari sinaliza o impasse entre os debatedores, pesquisadores experientes e referências em sua área. É o impasse em que, pelo visto, a sociedade ainda se verá envolvida por um bom tempo para exercer de forma consciente e bem informada seu direito de escolha.
O calendário dos debates da disciplina, que são abertos ao público e não necessitam de inscrição prévia, pode ser consultado na internet em www.fisio.icb.usp.br/bmb5805_2011.html.
Respostas da ciência vão demorar
O professor Vagner Roberto Antunes, do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, defende que a população deve estar munida de todas as informações e analisar os dois lados da moeda para tomar suas decisões quanto ao consumo de produtos transgênicos. Entretanto, Antunes reconhece que existem dificuldades, porque muitas vezes os dados trazidos a público estão em jornais ou revistas “que talvez nem sempre revelem a realidade do ponto de vista científico”.
O docente acredita que somente análises de longo prazo poderão dar um quadro mais seguro e completo da situação. Mais uma vez, há um entretanto: “Não vamos ter isso em dez ou vinte anos, mas em gerações”, sinaliza.
Antunes exemplifica com os altos índices de alergias verificados atualmente entre as crianças, bastante superiores aos de 30 ou 40 anos atrás. “O que está fazendo com que o sistema imunológico delas seja mais sensível? Certamente não é só o consumo de proteínas modificadas ou a ingestão de herbicidas, mas há outros fatores associados ao próprio progresso. A poluição, por exemplo, é muito maior hoje”, diz, mostrando a complexidade do quadro.
Os trâmites e entraves burocráticos que a academia enfrenta para a importação de animais transgênicos são grandes, na visão de Antunes, mas ao mesmo tempo dão garantia e amparo aos pesquisadores. Para o professor, os órgãos responsáveis por esses cuidados, como a CNTBio e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), “são sérios” e neles trabalham profissionais com “visão de bem comum”.
No programa de Fisiologia Humana do ICB, os animais transgênicos são utilizados como ferramenta técnica para analisar, por exemplo, como acontecem sinalizações em nível celular. “Conseguimos ver como a exclusão de determinadas proteínas afeta a função do organismo, ou como uma determinada doença acaba expressando ou não um tipo de gene, ou o que leva à expressão de uma proteína”, explica o professor. “Podemos fazer com fármacos, mas também com manipulação genética.”
Antunes ressalta que atualmente existem ferramentas que permitem fazer a transgenia e o chamado knockdown para um núcleo ou um tecido específico, o que ajuda a responder às questões ligadas à fisiologia e à patologia.
* Publicado originalmente no Jornal USP.