A operação que matou Osama bin Laden foi cuidadosamente planejada para não falhar. Um fracasso teria péssimas repercussões políticas nos Estados Unidos, que ingressa no clima de eleições presidenciais. Mas seria pior ainda do ponto de vista estratégico em um momento de tensões múltiplas e abalos significativos na ordem geopolítica global.
Uma falha dessa natureza complicaria a posição dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque e poderia fortalecer a autoconfiança de grupos terroristas anti-EUA. O sucesso tem uma importante carga efetiva e simbólica do ponto de vista estratégico. Acontece em um momento em que grande parte do mundo árabe pede mais democracia. Pode dar a Obama a razão final para terminar a retirada do Iraque e começar a saída do Afeganistão. Afinal as tropas dos Estados Unidos entraram no Afeganistão, após o 11 de setembro, para derrubar o governo talibã, aliado dos terroristas, capturar Bin Laden e derrotar a Al Qaeda. Bush falhou nesse intento e, ao dar prioridade à invasão do Iraque logo em seguida, enfraqueceu a visão e a capacidade operacional dos militares e do aparato de inteligência e contra-terrorismo de seu país, permitindo a fuga de Bin Laden para o Paquistão e o fortalecimento do Talibã, como força de resistência no Afeganistão.
Por isso a operação foi tão demorada e cuidadosamente planejada. Muito ao contrário do estilo Bush, que tomou seguidas decisões açodadas e sem suficiente informação, a operação que Obama determinou à CIA foi discreta, paciente e cuidadosa. O presidente foi informado da descoberta do complexo que tinha alta probabilidade de ser o esconderijo do líder da Al Qaeda em setembro do ano passado. Segundo relatos à imprensa de altos funcionários do establishment de inteligência, segurança nacional e doméstica, na madrugada de ontem, desde meados de fevereiro, encontros intensivos com Obama na Casa Branca determinaram que havia informação sólida o suficiente para agir. A partir de março, Obama passou a conduzir reuniões de planejamento e avaliação do Conselho de Segurança Nacional. No dia 29, Obama deu a ordem para que executassem a operação.
Em seu pronunciamento, ontem, no East Room da Casa Branca, às 23:35 horário de Washington, Obama disse que em meados de agosto foi informado de que havia uma pista da possível localização de bin Laden. O presidente disse que pouco depois de tomar posse determinou a “Leon Panetta, o diretor da CIA, que fizesse da captura ou morte de bin Laden a principal prioridade” na guerra contra a Al Qaeda, “mesmo que continuássemos nossos esforços mais amplos para desarticular, desmantelar e derrotar sua rede”. Foram precisos, disse o presidente, meses para confirmar e precisar essa pista e, finalmente, “na semana passada, determinei que havia informação suficiente para agir e autorizei uma operação para encontrar bin Laden e traze-lo à justiça”. Obama contou, ainda, que um pequeno time de americanos realizou a operação, sem baixas. “Após um tiroteio, eles mataram Osama bin Laden e assumiram a custódia de seu corpo”.
Até a divulgação da operação foi cuidadosamente preparada e ensaiada. Quem comparar a carta de Leo Panetta aos funcionários da CIA, os depoimentos dos funcionários destacados para falar à imprensa, transcritos pelo New York Times aqui, com o pronunciamento de Obama, verá que usam os mesmos termos e sequência de eventos. Essa comunicação planejada claramente tem dupla intenção política. Uma, evidentemente, é ter impacto no campanha de Obama pela reeleição que, com esse episódio, o início da recuperação da economia e as divisões republicanas, vai ficando cada vez mais certa. A segunda intenção é estratégica e não visa apenas a Al Qaeda e os grupos terroristas anti-EUA. Ela certamente pretende ter efeito sobre a operação militar conduzida no momento pela OTAN na Líbia contra Muamar Al Kaddafi, mas que tem participação central dos Estados Unidos.
O recado é claro. Nesse tipo de operação, o objetivo é atingir fatalmente a liderança e reduzir ao máximo as operações propriamente militares, de confronto em escala. Um oficial dos Estados Unidos, aparentemente envolvido na operação no complexo localizado em Abbottabad, perto de Islamabad, no Paquistão, disse que ela foi desenhada para matar bin Laden, não para capturá-lo. Vamos ser realistas e claros: a prisão e julgamento de bin Laden constituiria um processo complexo, contraditório, perigoso e demorado.
Toda guerra é suja. O terrorismo é sujo. A guerra antiterrorista é suja. Todas são moralmente condenáveis.
A ação antiterrorista tem elementos específicos: acaba utilizando métodos muito próximos aos que o inimigo usualmente utiliza. O assassinato, a eliminação física de lideranças é parte indissociável desse tipo de ação. Levada a extremos, como aconteceu no governo Bush, resvala facilmente para a tortura e para a supressão dos direitos individuais. Obama, que fez campanha contra a tortura e o desrespeito aos direitos civis, traçou limites algo difusos para as operações dessa natureza em seu governo, embora tenha reduzido a violência contra prisioneiros e a frequência das violações a direitos individuais. Mas a incapacidade de fechar Guantanamo, a retomada do julgamento militar de civis acusados de terrorismo e essa ação, aparentemente desenhada para matar e não capturar bin Laden, mostram que não está disposto a relaxar tanto assim a política de segurança.
É claro que essa questão envolve a necessidade de alguma dose de realpolitik. Um país alvo de terroristas, ainda que tenha contribuído com suas ações para provocar reações extremas, não pode deixar sua população vulnerável. Os tipos de operações de segurança que ameaças dessa natureza pedem não podem variar muito. Nesse mundo é impossível ficar com as mãos limpas, de lado a lado.
As consequências da morte de bin Laden provavelmente irão, como disse, muito além de um fechamento do longo processo iniciado com o ataque às torres gêmeas, em 11 de setembro de 2001, e à determinação de desarticular e derrotar a Al Qaeda. Pelo menos três questões estratégicas devem ser consideradas.
Primeiro, como indicado acima, pode ser utilizada como um elemento da operação política e psicológica em apoio à ação militar na Líbia. Até ontem, a convicção dominante entre os analistas, de todas as persuasões, era de que seria pouquíssimo provável derrubar Kaddafi sem uma invasão completa, por terra, e a ocupação de Tripoli e outras cidades importantes. Agora, Washington mostrou que uma operação limitada, com recursos de inteligência bem coordenados e a ação executada por um comando de forças especiais – parece que em Abbottabad foi um grupo da ‘Navy Seals’ – focada na captura ou morte do líder inimigo é alternativa viável. Não estou dizendo que a Casa Branca está contemplando essa possibilidade na Líbia, mas que esse tipo de ação surge no cenário como alternativa concreta.
As principais tentativas desse tipo no passado fracassaram. O sucesso indica que houve melhora na qualidade da inteligência e muito avanço tecnológico. Não por acaso, a NGA – Agência Nacional de Inteligência Geoespacial foi citada como importante recurso no sucesso da operação contra bin Laden. Há informações de que, na gestão Obama, diminuiu a notória competição entre as agências e aumentou o grau de cooperação interagência.
A segunda questão estratégica tem a ver com a própria Al Qaeda. A reação de lideranças muçulmanas hostis aos Estados Unidos foi de tratar bin Laden como mártir. Grupos jihadistas que não negaram sua morte, disseram que ela não põe fim à Jihad contra o EUA, porque ela não tem a ver com pessoas. O líder do Hamas, Ismail Haniyeh, chamou bin Laden de “mártir” e “guerreiro sagrado”. Em comunicado oficial, a organização condenou o que caracterizou como “assassinato de um santo guerreiro árabe”. É claro que para a Al Qaeda e outros grupos que compartilham sua causa e seus métodos, a morte de bin Laden é um duro golpe emocional e político. Também revela que o aparato de inteligência dos Estados Unidos evoluiu e que o sistema de segurança desses grupos tem falhas que os enfraquece diante desse aparato renovado. Esse golpe acontece em um momento que os movimentos fundamentalistas estão enfraquecidos pelas revoltas no mundo árabe a favor da democracia, envolvendo grandes maiorias e expressivas frações minoritárias todas muçulmanas. É um momento de fragilidade política dos radicais e fortalecimento das forças muçulmanas pacifistas e mais democráticas.
A Al Qaeda não é mais, há muito tempo, a mesma organização que comandou o 11/9. Ela se fragmentou e cresceu, tornou-se multiétnica, mais difusa ideologicamente e a liderança de bin Laden se tornou muito mais motivacional e política, que operacional e militar. A Al Qaeda já nem é a mais ativa organização terrorista. Certamente, com esse golpe ela vai se fragmentar ainda mais e perder força. Provavelmente, diante da nova conjuntura no mundo árabe, mais pacifista e democrática, e da nova capacidade de ação antiterrorista, o terrorismo se caracterizará por grupos menores, sem lideranças centrais, mais isolados, sem países aliados capazes de lhes dar abrigo, cobertura e financiamento. Grupos mais incontroláveis e radicais, mas também menos eficazes e mortais.
Finalmente, uma questão estratégica envolve o Paquistão. Logo que começaram a circular as notícias da morte de bin Laden, na noite de ontem, autoridades paquistanesas procuraram os correspondentes estrangeiros para dizer que havia sido uma operação conjunta, com participação de forças paquistanesas. Tudo indica que não foi e que o governo do Paquistão só foi avisado após o sucesso da missão. O complexo de bin Laden fica muito próximo a uma base de cadetes, em Abbottabad, e as imagens e descrições mostram que era uma construção de alta segurança, obviamente muito além do que se utilizaria para uma residência particular. O presidente Obama disse que telefonou ontem à noite para o presidente Zardari e que o seu time também falou com suas contrapartes paquistanesas. É curiosa e eloquente a conclusão de Obama: “eles concordam que este é um dia bom e histórico para nossas nações. E, indo adiante, é essencial que o Paquistão continue a se unir a nós na luta contra a Al Qaeda e seus afiliados”. Ou seja, houve conversa a posteriori e um recado delicado e preciso de que os Estados Unidos esperam que o Paquistão também tenha aprendido a lição.
Esse episódio significativo acontece em um momento de fluidez e mudança na geopolítica global. Um período de grandes incertezas políticas e econômicas. De intensa transição científica e tecnológica. É parte dessa grande transição que vivemos e que desenhará os verdadeiros contornos geopolíticos, econômicos e sociais do século XXI.
* Publicado originalmente no site Ecopolítica.