A ordem é despejo e progresso

O portão fechado aos índios e seus aliados, abre-se como por encanto aos homens da lei e da ordem.

“Em primeiro lugar, queremos contar a todos os juízes e sociedades que estamos coletivamente em estado de medo, desespero e dor profundos. Já sobrevivemos em situação de miséria perversa há várias décadas… Hoje, no dia 26/1/2012, nós compreendemos claramente que nós não temos mais chances de sobreviver culturalmente e nem fisicamente neste país Brasil, visto que em qualquer momento seremos despejados de nossa área antiga reocupada por nós, portanto estamos com muita tristeza e perplexidade, ao receber esta notícia da oficial da Justiça e da Polícia Federal e Funai. Já estávamos com a alegria praticando o nosso ritual sagrado dia a dia aqui em minúscula terra antiga reocupada Nhanderu Laranjeira em que retornamos nos últimos dois anos.” (Carta da Comunidade Laranjeira Nhanderu aos Juízes do Brasil)

O portão fechado aos índios e seus aliados, abre-se como por encanto aos homens da lei e da ordem. O oficial de justiça, escoltado pela polícia federal e Funai, é portador de mais um decreto de medo e de condenação. A nova ordem de reintegração de posse é mais uma punhalada na pequena comunidade Kaiowá Guarani do Mato Grosso do Sul.

Quem acompanhou a saga de violência sofrida por essa comunidade nativa dessa região em sua dura e sofrida luta pela sobrevivência, certamente terá que se perguntar que país é esse que (mal)trata seus primeiros habitantes com tamanha covardia e crueldade. É a lei do mais forte se impondo, em nome do rei e da lei, da ordem e do progresso.

Quando no ano passado o agronegócio e sua lógica de produção a qualquer custo, com muito agrotóxico e agressão à mãe terra, deflagraram a campanha “Produção Sim, Demarcação Não” , estavam apenas explicitando a lógica perversa da negação das terras indígenas. E não tem sido outra a atitude do governo federal quando tem destinado bilhões para acelerar o agronegócio e a agroindústria, especialmente na produção da soja e do etanol. Isto por meio do bem-aventurado programa do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

Enquanto isso, a propalada e dezenas de vezes adiada regularização das terras indígenas andava a passos de tartaruga, sob constantes atropelos judiciais e o Senado procura mudar a Constituição, chamando para si a responsabilidade de decidir sobre a definição e demarcação das terras indígenas.

Memória do massacre, sofrimento e esperança

A comunidade Kaiowá Guarani de Laranjeira Nhanderu, desde dia 11 de setembro de 2009, vem vivendo uma longa via crucis. Despejada para a beira da estrada BR-163, ali conviveram com toda espécie de sofrimento, passando por momentos com seus barracos inundados, sob a implacável agonia do Sol, do frio e da chuva. Tiveram pelo menos três de seus membros mortos por atropelamento. Seus idosos e crianças convivendo com o medo diário do ronco dos carros.

Passaram heroicamente por todo esse massacre diário, sem jamais perder a esperança de um dia terem seus direitos respeitados e sua terra garantida. Esta situação chegou ao conhecimento nacional e internacional por intermédio das inúmeras visitas de delegações de solidariedade, desde os trabalhadores rurais sem terra até a Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. De representantes da Presidência da República a representantes de instituições internacionais de Direitos Humanos e defesa das populações indígenas.

Foi um ano e meio de travessia do deserto do sofrimento, que fez dessa comunidade um lugar especial de celebração da esperança, de afirmação da cultura, de luta com dignidade pela vida presente e futura.

Diante da morosidade de solução da questão da terra e fartos de promessas não cumpridas, retornaram à sua terra em maio do ano passado, com a certeza de que Nhanderu e os espíritos de seus guerreiros ancestrais lhes garantiriam sua terra tradicional. É o que vemos no veemente depoimento de Dona Adelaide, em https://www.youtube.com/watch?v=jnO_gdu19VU.

“Queremos sobreviver culturalmente e fisicamente aqui, queremos proteção e apoios vitais das Justiças do Brasil para garantir a nossa nova geração guarani-kaiowá neste país sem vítimas de violências perversas.” (mesma Carta)

* Egon Heck é militante do Conselho Indigenista Missionário.

** Publicado originalmente no site Brasil de Fato.