Espanta-me que a polêmica em torno do livro didático Por Uma Vida Melhor ainda renda artigos de opinião em jornais diários, como aconteceu no dia 30 de maio no capixaba A Gazeta. Talvez porque “o hábito do cachimbo deixe a boca torta”, eu esteja acostumada a ver temas controversos serem tratados com superficialidade e, logo depois, serem relegados ao esquecimento. Mas, como minha expectativa inicial quanto à não longevidade dos debates mostrou-se equivocada, o tema persiste e requer um posicionamento por escrito de quem, como eu, tem entrado “de cabeça” na polêmica, seja em sala de aula, seja nas conversas cotidianas, seja nos e-mails e nas redes sociais.
É esquisito que o professor de ética Carlos Alberto Di Franco, autor do artigo MEC não quer ensinar, publicado n´A Gazeta, sinta-se confortável em usar os argumentos que usou para sustentar seu ponto de vista. Seu ponto de partida é no mínimo discutível. E não sou eu apenas quem pensa assim: a Associação Brasileira de Linguística, a Associação Brasileira de Linguística Aplicada e pesquisadores de renome internacional (como Carlos Alberto Faraco, Edwiges Zaccur, Luiz Carlos Cagliari, Magda Soares, Marcos Bagno, Sírio Possenti e muitos outros) manifestaram-se em defesa do livro didático Por Uma Vida Melhor e do posicionamento do Ministério da Educação (MEC) no que tange o assunto.
Realidades linguísticas
O artigo do professor Di Franco afirma que “para evitar discriminações, o MEC quer renunciar ao dever de ensinar”. Desafio o professor a provar seu ponto de vista a partir do livro didático que enseja a polêmica ou a partir dos documentos oficiais produzidos e divulgados pelo Ministério; lembro apenas, de saída, que o MEC está fomentando o ensino na educação básica de coisas diferentes das que tradicionalmente se ensinava, o que é muito diferente de ser omisso ou de renunciar ao cumprimento de um dever. Da mesma forma, desafio o professor a comprovar sua afirmação de que o MEC “entende que pode promover o preconceito a explicação em sala de aula de que a concordância entre artigo e substantivo é uma norma da língua portuguesa”: o livro didático criticado, que o professor parece desconhecer, logo depois de mostrar como ocorre a concordância na fala coloquial, traz um quadro em destaque mostrando como ocorre a concordância na norma padrão; em seguida, o livro reitera a abertura do capítulo em pauta, lembrando que é importante conhecer e usar a norma padrão nas situações em que isto é o esperado.
Na sequência de sua argumentação, Di Franco escreve: “o MEC nos diz: na busca por um `mundo mais justo´ (sem preconceitos) pode ser aconselhável dizer algumas mentiras”. Gostaria que o autor tivesse mostrado em seu texto quais são as mentiras do MEC quanto ao tema aqui abordado porque toda a discussão realizada no livro didático Por Uma Vida Melhor é baseada nas sérias pesquisas sociolinguísticas (em torno da fala brasileira) realizadas em nossas melhores universidades públicas e privadas, como comprova uma farta bibliografia especializada, que o professor também parece desconhecer.
Gostaria, também, que o autor tivesse mostrado por que razões entende que “na lógica ministerial, o conhecimento é munição para discriminação”. Como leitora atenta dos documentos emanados do MEC no que concerne ao ensino de língua portuguesa, não vejo nenhum sentido na afirmação, já que os documentos oficiais produzidos e divulgados pelo MEC (como os Parâmetros Curriculares Nacionais e os guias para escolha dos livros didáticos, por exemplo) defendem exatamente o oposto: que é necessário conhecer e analisar as realidades linguísticas brasileiras, por comparação, a fim de minorar o preconceito linguístico e de potencializar a fala, a leitura e a escrita como práticas de um cidadão escolarizado.
“Corrompido e inadequado”
Mostrar e comparar as realidades linguísticas brasileiras é exatamente o que o livro didático criticado faz. O ponto que causou a discordância fomentada pela mídia e pelas redes sociais tem em vista, justamente, ensinar as diferenças entre a concordância em textos produzidos nas situações informais e em textos produzidos nas situações que requerem a norma padrão (sendo que, antes e depois, o livro ensina tópicos como uso da pontuação, divisão de parágrafos, etc. – o que, mais uma vez, desmente a ideia de que “o MEC não quer ensinar” e derruba as afirmações sensacionalistas que foram veiculadas por diversos dias seguidos, em diferentes espaços).
Causa-me espanto, por fim, que o professor Di Franco atribua a postura do MEC a um incômodo em lidar com o conceito de “verdade”. Diz ele, a seguir, como corolário de seu artigo, que “o MEC – de fato – entende assim: numa sociedade plural, não se poderia ter apenas uma única norma culta para a língua portuguesa. Deixemos nossos alunos `livres´ para escolherem as diversas versões”. Pergunto: de que outra forma o MEC, os livros didáticos e os professores de Língua Portuguesa poderiam agir, senão dizendo que as pessoas são livres para escolher entre as muitas possibilidades linguísticas existentes? Seria tentando restringir os usos da língua que, segundo uma perspectiva normativa, seriam “errados”? Sinto muito, mas, além de ser algo semelhante a “enxugar gelo” – porque impossível de ser feito –, essa postura se assemelharia a algo que foi feito durante períodos fascistas da história recente do mundo, em que, inclusive em relação às práticas linguísticas, se tentou promover uma “higienização” do que era considerado corrompido e inadequado tendo em vista o padrão almejado.
Ventos democráticos
Outros pontos de esclarecimento, quanto ao tema, são os seguintes: 1) o livro didático contestado não apresenta “erros”, mas usos específicos da língua portuguesa, em situações específicas que estão claramente diferenciadas daquelas em que o uso do chamado padrão culto é requerido. Tais usos são recorrentes em milhares de situações vividas por milhões de falantes da língua portuguesa; 2) o livro não defende a generalização desses usos específicos para todas as situações, mas, corajosamente, aborda sua existência, ao contrário da posição tradicional que faz de conta que eles não existem e que são aberrações. Eles existem e são corriqueiros. Mais do que corriqueiros, são legítimos; 3) o livro também aborda e didatiza o ensino da chamada norma urbana padrão (ou culta) e o faz enfaticamente, mostrando sua importância social, política, econômica, etc. O livro não proscreve o ensino da norma urbana padrão (ou culta), mas confronta variedades, buscando sua sistematização, tendo em vista os gêneros do discurso; 4) o livro, antes de ser apresentado como possibilidade para o professor das redes públicas, é avaliado por dezenas de especialistas, afinados às pesquisas existentes no país e mesmo fora dele sobre o assunto; com todo o respeito pela sempre legítima discordância, há que se levar esse dado em conta antes de se achincalhar na base do “achismo” um trabalho comprometido com políticas públicas da área de educação e, especificamente, de educação linguística.
Por fim, retomo aqui a fala do saudoso José Saramago (mais do que escritor consagrado, militante pela distribuição igualitária das riquezas materiais e imateriais do mundo): “Não há uma língua portuguesa, há línguas em português”. Oxalá daqui por diante nenhuma fala seja desqualificada como fala de pobre e ignorante: todas sejam erigidas à condição de legítimas e, portanto, dignas de serem consideradas nas escolas como objeto de comparação respeitosa com as demais falas que compõem a belíssima trama de um mundo muito maior que aquele engendrado por um único ponto de vista: o de quem acha que a verdade, o certo e o bom é perpétuo, imutável, atemporal e, portanto, se sente agredido quando os ventos democráticos ameaçam fazer desmoronar seus castelos de areia.
* Publicado orignalmente no site Observatório da Imprensa.