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Chilenos e peruanos se afastam de conflitos de Estado

O peruano Juan González (esquerda) e o chileno Luis Monsalve se abraçam diante da banca de jornais do segundo, na Praça das Armas de Santiago do Chile, em uma fraternidade alheia à questão limítrofe binacional decidida pelo Tribunal de Justiça de Haia. Foto: Marianella Jarroud/IPS
O peruano Juan González (esquerda) e o chileno Luis Monsalve se abraçam diante da banca de jornais do segundo, na Praça das Armas de Santiago do Chile, em uma fraternidade alheia à questão limítrofe binacional decidida pelo Tribunal de Justiça de Haia. Foto: Marianella Jarroud/IPS

 

Santiago, Chile, 31/1/2014 – Juan González e Luis Monsalve têm origens distintas, mas muito em comum. González, um imigrante peruano de 40 anos, que há oito vive em Santiago, e Monsalve, chileno de 63, concordam que os conflitos limítrofes nunca beneficiam os povos. Ambos viveram a expectativa gerada pela decisão do Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, que acolheu parcialmente, no dia 27, os argumentos de Chile e Peru, mas que entregou milhares de quilômetros quadrados a Lima, que até agora estavam sob controle de Santiago.

Na Praça de Armas de Santiago, onde ambos trabalham, unidades móveis de televisão, jornalistas e fotógrafos se instalaram nesse dia para registrar as reações de chilenos e peruanos à decisão, que dirimiu um dos diferendos limítrofes pendentes na América Latina. “Se conseguiu um pedaço de mar que é mais importante para os grandes dirigentes (autoridades) porque para nós, chilenos e peruanos, não nos dá nem um peixe”, afirmou González, vendedor de comida peruana na Praça, ao conversar com a IPS, no dia 29.

Para Monsalve, que possui uma banca de jornais na Praça, a questão “é um tema distante, porque nossos problemas reais se centram em como dar de comer às nossas famílias”. A Praça é o marco zero do Chile e o lugar onde habitualmente passeia grande parte dos 103.624 peruanos residentes, que compõem a principal comunidade de emigrantes no país.

O Tribunal fixou novos limites marítimos bilaterais e concedeu ao Peru cerca de 22 mil quilômetros quadrados daquela que foi zona econômica exclusiva do Chile por mais de 60 anos. A sentença, considerada salomônica nas duas capitais, respeitou o chamado Marco 1 como o nascimento do paralelo demarcador da fronteira, pretendido por Santiago, cortou a linha na milha 80 e não nas 200 milhas, como desejava o governo chileno.

A zona até agora em litígio é frequentada por cerca de 1.300 pescadores artesanais de anchova, utilizada principalmente para fazer farinha de pescado, mas é controlada por um grande consórcio do Grupo Angelini, o terceiro mais poderoso do Chile.

“O Tribunal de Haia resguardou a pesca dos pescadores artesanais mas também a da grande indústria, que explora o recurso até, mais ou menos, a milha 60”, disse à IPS o economista Claudio Lara. “Portanto, os interesses da pesca chilena, principalmente a empresarial, foram resguardados pela sentença”, disse o diretor de mestrado de economia da Escola Latino-Americana de Estudos de Pós-Graduação da Universidade Arcis.

O Peru se declarou ganhador do processo que iniciou em 2008 com seu recurso a Haia, enquanto o Chile minimizou a perda ao dizer que o Tribunal reconheceu sua posição de que os limites marítimos estavam traçados. Enquanto o presidente do tribunal internacional, Peter Tomka, lia a sentença inapelável na cidade holandesa de Haia, na Praça das Armas dezenas de imigrantes peruanos e cidadãos chilenos conversavam sobre suas consequências.

O Chile enfrentou a Bolívia e o Peru na sangrenta Guerra do Pacífico (1879-1883), na qual Lima perdeu as províncias de Arica e Iquique, e a Bolívia perdeu a de Antofagasta. A guerra deixou o Peru sem a extensão marítima que reclamou em Haia, enquanto deixou a Bolívia sem saída para o Oceano Pacífico, em um processo ainda a ser resolvido.

Durante o conflito os soldados chilenos saquearam diferentes regiões peruanas, incluindo Lima, roubaram valiosas obras de arte e livros, violaram mulheres e queimaram casas. Entretanto, 130 anos depois, Chile e Peru compartilham muito: são membros da Aliança do Pacífico (com Colômbia e México) e convivem em numerosos mecanismos regionais e internacionais. Além disso, os investimentos chilenos no Peru somaram US$ 13,6 bilhões entre 1990 e 2013, e os investimentos peruanos no Chile US$ 8 bilhões, segundo o escritório do ProChile em Lima.

Na zona de fronteira, centenas de milhares de pessoas dos dois países viajam livremente entre a chilena Arica e a peruana Tacna. Os chilenos vão a hospitais de Tacna, onde o acesso à saúde é mais barato e o atendimento mais cordial, afirmam. Segundo o prefeito de Arica, Salvador Urrutia, cerca de cinco mil pessoas cruzam a fronteira diariamente, número que triplica nos finais de semana.

A cientista política Francisca Quiroga, professora da governamental Academia Diplomática do Chile, acredita que, além da posição dos Estados, “hoje a sociedade se mobiliza, se gera maior mobilidade social e, portanto, se estabelece um olhar a partir de outros pontos de vista, e não apenas do Estado-nação”. O discurso do inimigo externo hoje enfrenta uma sociedade que apresenta novas formas de resolução de conflitos.

Para o peruano González a sentença é boa. “Foi melhor assim, para não ficar lutando. Se tivessem dado mais um pedaço ao Peru, para os chilenos teria sido pior e a coisa poderia ficar mais séria”, afirmou. “Foi tudo normal, tranquilo. Havia diferentes opiniões, dos peruanos e nossas, mas nunca houve clima de ódio”, pontuou Monsalve. Os dois concordam que a relação entre chilenos e peruanos é cordial. Convivem na Praça das Armas, onde se vende frutos e comidas do Peru.

Quiroga disse que a cidadania avançou para outras formas de se relacionar, embora os Estados da região se mantenham em uma postura sobre soberania bastante rígida. Como exemplo citou a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), que “em seu tratado constitutivo mantém o princípio de soberania muito rígido, sustenta o princípio de não intervenção e de defesa ao interior de cada nação”.

Chile e Peru, com sua política de estratégias paralelas, estabeleceram um olhar político-jurídico para a sentença, sem tocar no econômico, acrescentou Lara, assegurando que desde o início do processo, em 2008, os chilenos investiram no Peru mais de US$ 8 bilhões.

No dia 29, em reunião bilateral durante a II Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), realizada em Havana, os presidentes Sebastián Piñera, do Chile, e seu colega peruano, Ollanta Humala, acordaram implantar gradualmente a sentença, em um clima cordial de vizinhança. Enquanto isso, em Santiago, González e Monsalve conversavam pela primeira vez, apesar de trabalharem a meio quarteirão de distância. Nos próximos dias, Luis vai comer na barraca de Juan, que disse que o receberá com prazer. Envolverde/IPS