A Cinemateca Brasileira, ao longo do tempo, passou por muitas transformações. Hoje, ela guarda um acervo impressionante e ocupa um complexo de antigos edifícios tombados, todos restaurados e modernamente equipados, numa área de 24 mil Km², cedidos pela Prefeitura de São Paulo, onde era o matadouro municipal.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL– O que a Cinemateca faz hoje?
CARLOS– ACinemateca é uma instituição nacional de preservação e difusão do audiovisual brasileiro, e isso se traduz em muitas e variadas ações, que se desdobram e demandam diferentes estratégias. Estamos falando de filmes, vídeos analógicos e digitais e documentação correlata (fotografias, cartazes, roteiros, notícias de jornal etc.). Em termos de conteúdos, além de produções cinematográficas profissionais e amadoras, estão incluídos materiais de televisão do passado. Uma das nossas pretensões para o futuro é poder também preservar a memória da produção da televisão brasileira. Hoje nenhuma instituição faz isso.
PATRÍCIA– Audiovisual é uma terminologia mais atual, mas de modo geral poderíamos dizer que a Cinemateca preserva e difunde o cinema brasileiro. Nos primeiros tempos do cinema se passava filmes somente em película, mas hoje há uma diversidade muito grande de suportes. Então, do ponto de vista tecnológico, passou-se a falar de filmes como materiais audiovisuais. DVD, vídeo de baixa ou alta definição, conteúdo digital, site… Já recebemos HD como Depósito Legal, por exemplo.
DIPLOMATIQUE– Vocês têm todo um suporte técnico para viabilizar esse projeto. Qual é o projeto?
PATRÍCIA– É guardar da melhor forma possível, de maneira que durem muitos anos, tanto os filmes quanto fotos, roteiros e toda essa documentação correlata. Preservar para o presente, para o futuro próximo e distante, e também difundir, porque só faz sentido preservar para dar acesso ao que se está preservando.
DIPLOMATIQUE– O que a Cinemateca tem hoje? O que ela pode oferecer para a sociedade brasileira?
CARLOS– Ela tem quase toda a informação sobre a filmografia brasileira, pretendendo realmente ser exaustiva nesse assunto, registrando toda a produção audiovisual brasileira de longas e curtas-metragens, ficção, documentário, infantil, animação…
PATRÍCIA– É importante destacar que essa informação, sempre que possível, vem de fonte primária.
DIPLOMATIQUE– O que é uma fonte primária?
PATRÍCIA– É o próprio filme, o letreiro com os créditos dizendo quem estava lá, quem integrou a equipe técnica, o título do filme etc. Esse é um trabalho artesanal, de formiguinha: examinar o filme, transcrever para a base de dados e disponibilizar para o público no site da Cinemateca. A idéia é ter um banco de dados totalmente organizado, de acordo com o material audiovisual, disponível para todos os interessados.
CARLOS– Sabemos inclusive que, das primeiras décadas da atividade cinematográfica nacional, no período do cinema mudo ou silencioso (até os anos 1930), muito pouco se salvou: apenas cerca de 7%.
PATRÍCIA– O nitrato, que foi fabricado até 1950 e era a base do material químico da película, pegava fogo ao se deteriorar. O período do cinema mudo foi até 1930 e muito se perdeu por causa dos incêndios. O cinema sonoro apareceu no comecinho da década de 1930.
DIPLOMATIQUE– E o que vocês recuperaram que é uma jóia, uma preciosidade que, se não fosse o trabalho de vocês teria sido perdido?
PATRÍCIA– Essa pergunta pressupõe um juízo de valor que não cabe à Cinemateca, embora as próprias demandas que se apresentam para a instituição sejam fundamentadas nisso. Recuperamos vários filmes silenciosos, muitos incompletos – apenas fragmentos, mas fragmentos importantíssimos, registros não-profissionais e outros.
Nosso ícone, em termos das restaurações recentes, é Limite, de Mário Peixoto (1931), cuja restauração digital concluímos em 2010. Há também São Paulo, a symphonia da metrópole, de 1929, que foi recuperado aqui em 1998 e permite conhecer São Paulo no começo do século XX.
Temos os filmes mudos, depois os filmes sonoros em preto e branco (até 1950, 60, no Brasil até mais tarde, final da década de 1960), em seguida vem o filme colorido e o CinemaScope, sempre película.
Todos os dias recebemos material até de cinema estrangeiro, ainda que o nosso foco seja o cinema brasileiro. É complicado guardar, porque é preciso ter um depósito climatizado com manutenção constante, revisão permanente… ‘Receber materiais estrangeiros produz situações curiosas: temos aqui uma coleção grande de filmes franceses, canadenses, japoneses e chineses, mas alguns desses chineses ainda não conseguimos catalogar por não contarmos com legenda e nem com técnicos que dominem o idioma.
Há hoje, na Cinemateca, o registro de cerca de 40 mil títulos. Cinejornais de diversas épocas, trazendo questões políticas, sociais, esportivas (sobretudo futebol), algumas vezes foram encontrados na rua, estavam jogados e foram recolhidos por nós. Temos material da Agência Nacional, reportagens feitas pela TV Tupi nas década de 1950 a 1980 e diversas coleções importantes para que se conheçam aspectos cotidianos do país.
Há também todo o material dos estúdios Vera Cruz,da Atlântida, que é um cinema muito inspirado em Hollywood, com grandes estúdios etc. Compõem esse acervo muitas chanchadas, muitos longas, como os clássicos com Oscarito e Grande Otelo.
Restauramos também, parcial ou integralmente, acervos importantes para o movimento do Cinema Novo, como os de Glauber Rocha, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Domingos de Oliveira, Cacá Diegues, além de séries como O Vigilante Rodoviário,filmes de José Mojica Marins (Zé do Caixão), Ozualdo Candeias e muitos outros.
Alguns dos projetos foram propostos por herdeiros de cineastas ou responsáveis por acervos, mas elaboramos também, por exemplo, o Programa de Restauro de Filmes da Cinemateca Brasileira, patrocinado pela Petrobras, que permitiu equipar o Laboratório e restaurar obras cinematográficas em película, selecionadas por edital público. Estamos agora na segunda edição dessa iniciativa, com 15 títulos em restauração.
CARLOS– Outra ação interessante que fizemos recentemente foi o projeto Repórter Esso – Edição Extraordinária, financiado pela TBE – Transmissora Brasileira de Energia. Não existia VT nos primeiros anos de funcionamento da televisão brasileira, então as matérias que eram pautadas pela TV Tupi, por exemplo, eram filmadas em 16mm sem som. No momento em que o jornal ia ao ar, um roteiro era lido pelo âncora e a reportagem em película entrava ilustrando a matéria. Esse acervo, tanto de roteiros em papel quanto de películas em 16mm, está preservado aqui na Cinemateca. Como forma de dar uma nova vida a esse material, produzimos um DVD reconstituindo o que seria um dia de programação jornalística da TV Tupi, que permite conhecer o acervo contextualizado e ao mesmo tempo permitiu a restauração de diversas reportagens (em número muito maior do que as usadas no DVD, e todas disponíveis no nosso site).
Além do trabalho de restauração, a Cinemateca recebe Depósito Legal, que é a contrapartida dos filmes produzidos com algum tipo de recurso público. A legislação determina que uma cópia seja depositada na Cinemateca, como forma de garantir que o conteúdo seja preservado.
PATRÍCIA– E a Cinemateca faz criteriosamente a revisão da cópia; algumas vezes ela não é aceita e o produtor tem que mandar a segunda, a terceira, até que a qualidade esteja aceitável. Temos aqui a responsabilidade de preservar os conteúdos produzidos na atualidade, por isso é fundamental a análise do material tão logo ele chega à Cinemateca, para que no futuro não se repita o ciclo da deterioração que infelizmente conhecemos a fundo.
DIPLOMATIQUE– E esses 40 mil títulos estão todos disponíveis para serem utilizados?
PATRÍCIA– Grande parte sim, uma parcela necessita dos devidos tratamentos de conservação ou até restauração para voltar a circular. Ressaltamos que muitos materiais já chegam à Cinemateca em péssimas condições de conservação.
DIPLOMATIQUE– E como se dá o acesso?
CARLOS– Por diversos caminhos. Temos uma programação corrente na Cinemateca, nas nossas duas salas de cinema, que vai de meados de janeiro a dezembro, de terça a domingo, com algumas sessões extraordinárias às segundas-feiras. Alguns projetos especiais ocupam as manhãs: Cine-Educação, Cine Maior Idade, projeções técnicas; as sessões regulares são abertas ao público em geral.
Patricia – Essa mostra que está acontecendo agora, Verão de Clássicos, reúne não apenas títulos brasileiros. Muitos deles são buscados em outros lugares, nos acervos de outras cinematecas, de distribuidoras ou outras instituições parceiras. Internacionalmente, temos parcerias com instituições do Peru, da Colômbia, de Cuba, da Bolívia, do Chile, do México e da Itália, entre outros.
DIPLOMATIQUE– Se uma distribuidora quiser usar um filme daqui para passar na cadeia de cinema deles, como que é?
CARLOS– Faz-se um pedido. A Cinemateca pode ser proprietária de alguns materiais, mas como ela seguramente não será a produtora, consulta-se o detentor do direito patrimonial. O material será cedido apenas com a autorização do detentor dos direitos. Em casos como esses, de títulos com uma cópia única, mesmo que não pertença à Cinemateca, fazemos uma recomendação para o detentor dos direitos e o dono do material, desaconselhando o empréstimo. Mas, em última instância, eles poderão decidir emprestar o filme, mesmo pondo em risco a sua existência no futuro.
Temos um curso de cinema gratuito, com sala lotada toda terça-feira, resultado de uma parceria com a ECA – Escola de Comunicações e Artes da USP. Esse curso é realizado aqui, com material nosso e corpo docente da ECA, e é composto de módulos que podem ser ministrados por um professor ou mais, como neste primeiro semestre de 2011.
Patrícia – Temos uma parceria com a UNIFESP, que todo sábado exibe um filme, num trabalho de formação em História da Arte. Um sábado por mês há sessão com pesquisadores, que vêm, assistem e debatem. Temos ainda a sessão Primeira Exibição, que traz filmes novos, normalmente curtas-metragens de novos diretores.
CARLOS– Temos também a Sessão Averroes, que é uma parceria muito interessante com um grupo multidisciplinar ligado à medicina. Em sessões de cinema, discutem-se cuidados paliativos para doentes terminais.
DIPLOMATIQUE– O que mudou na Cinemateca nos últimos anos?
PATRÍCIA– A maneira de dialogar com as novas tecnologias. A Cinemateca era associada a objetos antigos e filmes velhos. Agora trabalhamos também com novas tecnologias, estamos equipados para projetar desde um filme em Super-8 até em alta definição. Mudou também o volume das demandas: processamos e preservamos muito mais.
CARLOS– Houve uma modernização de equipamentos, de condições de trabalho, melhora de remuneração, aumento do corpo de colaboradores… Isso também dá melhores condições de trabalho. Você não pode fazer tudo sozinho.
Hoje a Cinemateca Brasileira é interlocutora de problemas de conservação e preservação em audiovisual com o mundo inteiro. Conversamos com a Espanha, a Dinamarca, a Noruega, com os centros mais avançados de preservação, e trazemos sempre gente de fora para conversar, para mostrar nosso trabalho, buscar opções tanto técnicas quanto de conteúdo.
PATRÍCIA– Além dos intercâmbios técnicos, também recebemos convidados como, na última Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul, o ator Ricardo Darín, da Argentina; ou Liv Ullmann, que foi nossa homenageada em 2008 na mostra Liv Ullmann – a Atriz, a Diretora e Seus Filmes. Liv respondeu a perguntas de estudantes de cinema e apresentou cada um dos filmes da mostra. São trocas sempre muito instigantes.
DIPLOMATIQUE– E qual a relação de vocês tem com a RNP, a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa?
PATRÍCIA– Tecnologia de ponta. A conexão já está implantada, mas seu uso deverá tomar fôlego num futuro próximo. Graças a essa estrutura, poderemos fazer uma sessão aqui e transmitir simultaneamente, por exemplo, para todas as instituições conectadas a essa rede de fibra óptica, que conecta diversas instituições de ensino e pesquisa em todo o Brasil.
DIPLOMATIQUE– Quer dizer, a Liv Ullmann poderia estar sendo assistida por toda essa gente?
PATRÍCIA– Sim, e o melhor: em alta definição. Faremos este ano um curso de preservação audiovisual que será ministrado no México e no Brasil, em conjunto com a ECA. São oito módulos, dos quais sete são à distância, depois tem uma parte final presencial tanto no México quanto no Brasil. Essa conexão é incrível, um canal aberto, com grande capacidade de transferência de informações. Estamos construindo o nosso Banco de Conteúdos, onde estarão disponíveis muitos conteúdos em baixa, média e alta-definição, que poderão trafegar graças a essa estrutura da Rede Ipê.
DIPLOMATIQUE– Com o avanço da tecnologia daria para fazer um Youtube na Cinemateca?
PATRÍCIA– Sem dúvida nenhuma. Hoje temos 130 horas de reportagem da TV Tupi no ar, no site da Cinemateca. É possível pesquisar e assistir a reportagens sobre futebol, Che Guevara… Nossa missão é colocar à disposição no site o máximo de conteúdos que for possível. Já há longas-metragens, chanchadas, cinejornais, filmes silenciosos, coleções de cartazes, fotografias, manuscritos… É um grande banco de conteúdos culturais digitais.
DIPLOMATIQUE– O problema de vocês é recuperar a parte que já está aqui ou tem mais o que buscar?
CARLOS– À medida que a Cinemateca Brasileira é reconhecida por sua competência e capacidade técnica, vamos sendo procurados por pessoas e instituições que vêm com lotes expressivos em termos de dimensão e de importância e que, por motivos diversos, não foram preservados pelos seus detentores. Então a pressão para que recebamos esses materiais é muito grande. Há muita demanda. E é um pouco angustiante porque não é só uma questão de recursos, é preciso tempo. Precisamos inverter a lógica de não preservar e depois restaurar.
DIPLOMATIQUE– A Cinemateca sempre administrou escassez de recursos e, no entanto, percebemos uma renovação tecnológica, uma modernização das instalações, todo um trabalho que requer muito recurso. Isso é política pública?
CARLOS– É política pública. Conseguimos reunir alguns talentos aqui com vontade política, com empenho, com paixão, com capacidade de propor e realizar o que vem se configurando como um projeto mais amplo. O Ministério da Cultura, que é a nossa casa, entendeu essa possibilidade e respondeu com eficiência.
DIPLOMATIQUE– A Cinemateca tem relação com o Ministério da Cultura?
CARLOS– A Cinemateca Brasileira é uma unidade da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. Foi criada na década de 1940 por Paulo Emilio Salles Gomes e outros companheiros de jornada, viveu diversas situações, foi um departamento do Museu de Arte Moderna, depois filmoteca do MAM de São Paulo… Cresceu, foi instituída uma Fundação Pública de direito privado, depois em 1984 ela se auto-extinguiu para ser incorporada à Fundação Nacional Pró-Memória. Nessa época houve um grande ganho de qualidade, de recursos, mas tampouco isso se sustentou por muito tempo. Em 2003 o ministro Gilberto Gil propôs que a Cinemateca Brasileira passasse a ser vinculada à Secretaria do Audiovisual.
Temos alguma sorte: a Cinemateca já tinha uma Sociedade Amigos, fundada no início da década de 1960. A SAC é fundamental para o estabelecimento de parcerias junto à iniciativa privada e a instâncias de governo – federal, estadual e municipal.
DIPLOMATIQUE– E os planos futuros?
CARLOS– A preocupação é dar institucionalidade a esse projeto. Desenvolvemos e conseguimos implantar um modelo de instituição que é apropriado para a nossa missão. Esperamos ter um orçamento próprio. Temos conseguido financiamentos sempre por projetos, mas queremos que seja uma dotação contínua. Contamos com o PPD – Programa de Preservação e Difusão de Acervos Audiovisuais, que é uma ação continuada contemplando toda a rotina de trabalho da Cinemateca: preservação, difusão, documentação, catalogação e restauração.
PATRÍCIA– Queremos que todos os acervos da Cinemateca tenham as melhores condições possíveis, um trabalho infindável. A guarda dos materiais deve favorecer a sua preservação e as possibilidades de acesso. O ideal seria não precisar de restauro, buscar a longevidade desses materiais e sua utilização.
*Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.