O cenário externo será o fio condutor da inflação e do câmbio no mundo. Fechar os olhos para isso pode constituir grave erro de política econômica. A melhor proteção contra as ameaças externas é o fortalecimento do mercado interno, especialmente pelo estímulo na renda para a base da pirâmide social e nos investimentos, e reduções de custos para as empresas. Assim, preocupam análises que, para combater a escalada inflacionária, pedem mais elevação da Selic, pouco se preocupam com a valorização cambial, e querem forte contração fiscal. No fundo, pregam a derrubada do crescimento econômico para reduzir a inflação.
Desde o último quadrimestre do ano passado, a inflação foi crescendo e passou a ser o foco das críticas ao governo e, particularmente, ao Banco Central (BC), por parte do mercado financeiro, que defendia o aumento da Selic para combater a escalada inflacionária. Como ela não foi elevada até o final do ano, as críticas foram subindo de tom e argumentava-se que a razão disso era política, para não prejudicar a candidata à presidência Dilma Rousseff.
Mesmo após a vitória eleitoral, na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), em 8/12, a decisão de não elevar a Selic, foi: “Nesse contexto, avaliando a conjuntura macroeconômica e as perspectivas para a inflação, o Copom decidiu, por unanimidade, manter a taxa Selic em 10,75% a.a., sem viés. Diante de um cenário prospectivo menos favorável do que o observado na última reunião, mas tendo em vista que, devido às condições de crédito e liquidez, o Banco Central introduziu recentemente medidas macroprudenciais, prevaleceu o entendimento entre os membros do Comitê de que será necessário tempo adicional para melhor aferir os efeitos dessas iniciativas sobre as condições monetárias. Nesse sentido, o Comitê entendeu não ser oportuno reavaliar a estratégia de política monetária nesta reunião e vai acompanhar atentamente a evolução do cenário macroeconômico até sua próxima reunião, para então definir os próximos passos na sua estratégia de política monetária.”
Foi a primeira vez que ocorreu a novidade de usar as medidas macroprudenciais, lançadas em 6/12, em vez da elevação da Selic, que foi o que comandou a política monetária de FHC e Lula. Essa decisão pode ter sido influenciada pelo desejo da presidente recém-eleita de baixar as taxas de juros no Brasil.
Ocorre que num mundo globalizado o processo inflacionário atinge a todos. Desde dez/2008, os juros básicos nos Estados Unidos estão próximos a zero e o Banco Central americano (Fed) no auge da crise, recomprou US$ 1,7 trilhões em títulos privados para ativar o crédito e o consumo. Como até ago/2010 a economia quase não reagiu, o Fed decidiu recomprar esses títulos e mais US$ 600 bilhões até junho deste ano.
Em consequência dessa forte injeção de liquidez, a partir de setembro do ano passado, ocorreu forte subida nos preços dos alimentos e commodities. Isso elevou a inflação em todos os países, especialmente nos emergentes, onde os alimentos têm peso significativo na composição da inflação. Segundo o FMI, cresceram cerca de 30% nos últimos seis meses de 2010. Como a nova injeção dos US$ 600 bilhões só vai terminar em junho deste ano, é provável que continuem subindo os preços dos alimentos e commodities para preservar seus valores em dólares.
Esse processo nos atingiu duramente e gerou intensa discussão sobre que políticas se deveriam adotar para brecar a inflação.
Posições em debate
Duas posições estão em debate. Uma, liderada pelo mercado financeiro, atribui importância maior ao que considera haver um excesso de demanda na economia e defende a elevação da Selic, deixar o câmbio flutuar, para reduzir os preços dos produtos importados (âncora cambial), e conter o crescimento econômico por meio de forte contração fiscal para a redução da demanda.
A outra, na qual me incluo, atribui peso maior à inflação importada, que já preocupa todos os países, a redução da Selic para a contração fiscal por reduzir as despesas com juros do governo, o uso de medidas macroprudenciais para elevar o valor das prestações nas compras, e o controle cambial para não prejudicar a competitividade das empresas e não elevar o rombo das contas externas.
Fatores externos
É bom recordar que em junho, julho e agosto do ano passado, a inflação foi zero, devido à queda de 1,89% no preço dos alimentos. No último quadrimestre de 2010, o IPCA atingiu a média mensal de 0,66%, os alimentos 1,63%, e os demais itens 0,37%. Caso os alimentos tivessem acompanhado a inflação média dos demais itens, a inflação anualizada seria de 4,54%, portanto, no centro da meta prevista para este ano.
É interessante comparar a inflação média mensal do 3º quadrimestre com a do último quadrimestre de 2010 das commodities (que inclui alguns alimentos) e sua repercussão sobre os preços no atacado e destes, com defasagem, para o varejo. Conforme quadro à esquerda (publicado acima), na coluna “4º quadrim”, a média mensal de inflação das commodities foi de 3,82% (petróleo e derivados, 4%, matérias-primas, 2,96%, carnes, 1,88%, e grãos, oleaginosas e frutas, 4,98%). O quadro à direita na coluna “4º quadrim”, mostra o impacto das commodities sobre os preços por atacado IPA (1,24%) e os índices gerais de preço (IGP-DI: 1,02% e IGP-M: 1,07%), onde o preço por atacado tem peso de 60% e sobre a inflação ao consumidor (INPC, IPC e IPCA) no entorno de 0,7%, ainda não suficientemente contaminada.
A contaminação sobre a inflação ao consumo ocorreu de forma mais intensa neste início de ano, quando o IPCA médio do primeiro trimestre atingiu 0,81% contra 0,66% do último quadrimestre de 2010.
O mercado financeiro, interessado em elevar a Selic, desconsiderou isso e vem pressionando o Banco Central (BC) para novas elevações, usando para isso o boletim Focus – sua principal arma – com previsões de inflação cada vez maiores a cada semana de publicação deste boletim, cujos dados são do mercado financeiro!
Está surtindo efeito essa pressão, pois o Copom, temendo as críticas de que perdeu o controle da inflação, voltou a elevar a Selic pela terceira vez neste ano e deverá continuar a elevá-la, conforme divulgado no dia 27/4, na sua última ata: “O Copom entende, de forma unânime que, diante das incertezas quanto ao grau de persistência das pressões inflacionárias recentes, e da complexidade que envolve hoje o ambiente internacional, o ajuste total da taxa básica de juros deve ser, a partir desta reunião, suficientemente prolongado.” O grotesco é que a Selic já é o triplo (!) do país que vem em segundo lugar no ranking das mais altas taxas básicas de juros, a Turquia.
Limites de atuação
Diante destes fatos surge a questão: o que fazer para conter essa escalada inflacionária.
Em primeiro lugar é reconhecer o que não depende de ação do governo. É o caso da inflação proveniente do exterior nas commodities e alimentos. Só são passíveis de intervenção, com a continuação da valorização do real, que já atingiu níveis preocupantes para a indústria e sangrou as contas externas.
Também não depende de ações do governo, a inflação dos preços administrados, que pesam 30% na composição do IPCA. Eles são insensíveis às condições de oferta e de demanda porque são estabelecidos por contrato, por órgão público ou agências reguladoras: serviços telefônicos, derivados de petróleo (gasolina, gás de cozinha, óleo para motores), eletricidade, planos de saúde, taxa de água e esgoto, IPVA, IPTU e tarifas de transporte público. Só em pequena parte pode atuar o governo federal, como no caso dos combustíveis. No momento o governo resiste em elevar o preço da gasolina, mas a última ata do Copom considera que haverá aumento de 2,2% neste ano.
Excluindo a inflação importada e os preços administrados, sobram cerca de 30% de componentes sobre os quais o governo pode agir para tentar segurar a inflação, o que evidencia as limitações das autoridades para um combate amplo à inflação. Tendo isto presente, é importante considerar os principais fatores que estão influenciando a inflação.
Fatores que influenciam a inflação
Elevam a inflação especialmente os preços de alimentos, commodities e, em parte, o petróleo, que repercute a inflação importada, os preços dos serviços (que não sofrem concorrência externa), a indexação de alguns contratos que se baseiam na inflação ocorrida no passado, e dificuldades para a contratação de mão-de-obra devido ao desemprego ter atingido níveis considerados baixos. Olhando para 2012, há a elevação do salário mínimo, que por lei deverá subir entre 13% e 14% injetando recursos que vão aumentar o consumo das famílias da base da pirâmide social e, consequentemente, a demanda.
Reduz a inflação a safra recorde prevista de produtos agrícolas, um abrandamento do consumo das famílias devido à perda inflacionária de seus rendimentos, o maior comprometimento de sua renda disponível em função de compras feitas no passado, especialmente com prestações de imóveis, automóveis e eletrodomésticos e a valorização do real reduzindo os preços dos produtos importados, o que serve para a contenção dos reajustes dos preços internos.
Vale destacar, também, as perspectivas da oferta e da procura. No ano passado, a Formação Bruta de Capital Fixo, que representa os investimentos na economia, cresceu 21,8% e o consumo 6,1%. Esse crescimento dos investimentos acima do consumo já vem ocorrendo há tempos. Nos últimos sete anos (2004 a 2010) em termos médios anuais os investimentos cresceram 7% e o consumo 4,4%. Isto significa que a capacidade de produção vem crescendo acima do consumo, o que é um bom sinal para as perspectivas inflacionárias. Fora isso, o governo, por meio de medidas macroprudenciais encareceu o crédito, especialmente para compras superiores a 24 meses, enxugou cerca de R$ 80 bilhões em depósitos compulsórios dos bancos e cortou R$ 50 bilhões do orçamento.
Para surpresa de muitos, pelas Contas Nacionais, que registram a evolução do PIB, os gastos do governo vêm crescendo em níveis abaixo do crescimento do PIB em todos os anos, à exceção de 2009, quando evoluíram 3,9% para conter a queda do PIB que chegou a 0,6%. Na média anual, entre 2003 e 2010, o PIB cresceu 4%, o consumo das famílias 4,4%, os investimentos 6,7% e os gastos do governo 3,2%. Em 2010, os gastos do governo cresceram 3,3% e o PIB 7,5%.
Combate eficaz
Conforme tratado em artigo anterior, o máximo de redução de despesas do governo federal tem baixo efeito sobre a demanda, pois: a) pelas Contas Nacionais, os gastos do governo são 21% da demanda, dos quais 57% são de Estados e Municípios; b) dos 43% do governo federal, apenas 20%, inclusos aí os investimentos, são passíveis de gestão devido às amarrações legais do orçamento; c) caso se consiga reduzir 20% via gestão, se teria uma redução de apenas 0,36% (!) da demanda (21% x 43% x 20% x 20%).
Diante deste quadro, caso se atribua à demanda (consumo das famílias, gastos do governo e investimentos) o crescimento da inflação, o mais acertado seria reduzir o ritmo de crescimento do consumo das famílias, já que os investimentos constituem o alimento para o crescimento da oferta futura, ou seja, o antídoto da inflação, e a possível redução de gastos do governo é pequena. Mas, se fosse o caso de atenuar o crescimento do consumo, o melhor caminho seria encarecer o crédito, especialmente para compras com prazos mais longos. Isto tem a vantagem de elevar as prestações e, principalmente, proteger o consumidor de riscos de inadimplência. O governo fez isso a partir de 6/12 com as medidas macroprudenciais, com bons resultados. Se necessário pode elevar mais ainda o valor das prestações para prazos inferiores a 24 meses. Basta querer.
A outra componente do consumo é a massa salarial, que vem evoluindo devido às políticas que incorporaram enorme contingente de trabalhadores ao mercado de trabalho, estimulados pelas elevações do salário mínimo e de programas sociais como o Bolsa Família. Este componente deve ser preservado e estimulado, pois a geração de empregos induz o aumento da produção, dos investimentos e da economia. O importante é que o consumo evolua mais naturalmente com a massa salarial, do que pelo estímulo exagerado do crédito como ocorreu nos últimos anos.
Mas não creio que seja a demanda a responsável pela elevação da inflação. O fator externo tem feito a inflação saltar em todos os países, muitos dos quais já ultrapassaram o piso superior de suas metas de inflação. Até países como a China, onde o governo tem um controle mais rígido da economia, já atingiu 5,4% e provavelmente vai crescer ainda mais neste ano. Nos Estados Unidos, ainda sob o efeito da crise, já bateu nos 2,7% e há previsões de que atinja 4,5% no final do ano. O Banco Central Europeu preocupado com a inflação na zona do euro, que caminha para 3%, já começou a elevar os juros, apesar da série crise fiscal e social em vários países da zona.
Fato é que estamos ao sabor dos humores externos da política monetária dos Estados Unidos, da crise na Europa, da indefinição do futuro do Japão face às consequências do terremoto e da insegurança do sistema de geração de energia nuclear, e da conflagração do Norte da África e no Oriente Médio.
Enquanto não for enxugada a elevada liquidez internacional, os preços de alimentos, commodities e petróleo continuarão elevados e com propensão para subir, puxados pelo crescente consumo asiático e de outros países emergentes.
É de se destacar que, além dos riscos à segurança alimentar e energética, as altas nos preços dos alimentos, commodities e do petróleo comprometem o crescimento econômico mundial, pois reduzem a disponibilidade para o consumo de outros bens e serviços, reduzindo a arrecadação dos governos. Isto é particularmente importante no caso dos Estados Unidos, pois começam a surgir dúvidas sobre sua capacidade de pagar sua dívida de US$ 14,3 trilhões, tendo sido rebaixada sua classificação de risco pela Standard & Poor’s. Os Estados Unidos têm o maior déficit fiscal do mundo, como parcela do PIB (10,8% neste ano), e a segunda maior necessidade de financiamento, superada só pela do Japão.
Da mesma forma que até 2008 não se encarou os riscos da crise da bolha imobiliária nos Estados Unidos, há uma tendência a minimizar a ascensão dos déficits fiscais e das dívidas nos Estados Unidos, Europa e Japão. Em 2007, antes da crise, a dívida dos países ricos era de US$ 26 trilhões ou 47% do PIB global. Atualmente, é de US$ 42 trilhões, ou 61% do PIB global e a tendência é crescer ainda mais. Esta pode ser uma das principais ameaças à recuperação da economia mundial.
O cenário externo será sem dúvida o fio condutor da inflação e do câmbio no mundo, e fechar os olhos para isso pode constituir grave erro de política econômica. Portanto, a melhor proteção contra as ameaças externas é o fortalecimento do mercado interno, especialmente pelo estímulo na renda para a base da pirâmide social e nos investimentos, e reduções de custos para as empresas. Assim, preocupam análises que para combater a escalada inflacionária pedem mais elevação da Selic, pouco se preocupam com a valorização cambial, e querem forte contração fiscal. No fundo, pregam a derrubada do crescimento econômico para reduzir a inflação.
O que poderia justificar um efeito favorável da Selic para a contenção inflacionária seria sua função de favorecer a âncora cambial, barateando as importações e ajudando a abrandar o efeito externo dos preços das commodities que importamos, mas isso tem efeitos colaterais adversos: redução da competitividade das empresas, forte elevação dos rombos nas contas externas e crescente custo de carregamento das reservas internacionais.
A consequência desta irresponsabilidade cambial é a crescente transferência de indústrias brasileiras para o exterior, por meio de investimentos em novas fábricas ou aquisição de empresas já em operação.
É necessário separar o joio do trigo no ataque à inflação, reconhecer nossas limitações e inovar com medidas macroprudenciais, o que não se consegue com os males causados pela elevada Selic. Tenho dúvidas se o governo vai enfrentar o mercado financeiro. Por enquanto se submete a ele, o que contraria um desenvolvimento sustentável com distribuição de renda.
* Amir Khair é mestre em Finanças Públicas pela FGV e consultor.
** Publicado originalmente no site Agência Carta Maior.