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Curandeiros mutilam milhões de meninas no Egito

As famílias pobres do Egito consideram a mutilação genital feminina uma forma de preservar a castidade das meninas. Foto: Amr Diab/IPS
As famílias pobres do Egito consideram a mutilação genital feminina uma forma de preservar a castidade das meninas. Foto: Amr Diab/IPS

 

Cairo, Egito, 29/4/2014 – Saber Abd El Mawgoud começou sua carreira castrando ovelhas e cabras, antes de passar aos seres humanos. Seu primeiro experimento foi com um menino que tentou circuncidar em 1999 diante da insistência do pai. A criança morreu poucos dias depois de uma infecção pós-operatória, conta Mawgoud, de 67 anos e natural da província de Al Monofiya, 60 quilômetros ao norte do Cairo.

Mawgoud continuou com o ofício de cirurgião, com a assistência de uma enfermeira durante alguns anos e depois sozinho. “Costumava fazer uma média de dez operações por semana, passando pelos povoados, e em pouco tempo fiquei muito famoso”, contou à IPS. “Às vezes, os xeques anunciavam nas mesquitas que eu havia chegado, para que os aldeões fossem me buscar”, acrescentou.

Logo começou a operar principalmente meninas. “Depois da minha má experiência com a circuncisão de meninos, me especializei na mutilação genital feminina e realizei milhares de operações. Algumas morreram, especialmente quando havia epidemias”, contou Mawgoud. “Mais de uma vez enfrentei os tribunais porque os pais me denunciavam, mas era solto após pagar multa por trabalhar sem licença, sobretudo porque os pais acabavam admitindo que haviam concordado que eu fizesse a operação”, acrescentou.

Em 2010, a quantidade de cirurgias que praticou caiu, quando o Ministério da Saúde lançou uma campanha educativa para que a população procurasse pessoal médico e não curandeiros. Mawgoud só compreendeu que vinha operando as meninas de maneira incorreta, quando uma paciente sofreu grave hemorragia e seu pai a levou ao hospital. No entanto, Mawgoud não tem reparos sobre sua atuação. “Os pais mutilam seus filhos por costume. Considera-se apropriado que o façam, para evitar a desgraça dos pais quando forem idosos”, afirmou. Porém, reconhece que não operou suas netas. Pediu às suas mães que as levasse a um hospital, por medo de causar-lhes algum dano.

A ablação é prejudicial em muitos aspectos, segundo a médica El Naglaa Shabrawy, chefe do departamento de obstetrícia e ginecologia da Faculdade de Medicina Al Azhar. “É um costume tradicional de nossa sociedade ignorante. Remonta à era dos faraós e não tem benefícios para a saúde e nenhum tipo de fundamento religioso no Islã”, disse a médica à IPS. “Também tem efeitos negativos nas mulheres, que sofrem hemorragias mortais, retenção urinária severa e infecções”, destacou.

Outros problemas são de cunho psicológico. “Pode afetar as relações sexuais e causar problemas para toda a vida. A mutilação provoca apatia emocional nas mulheres pelo fato de terem cortado parte de um órgão humano criado por Deus”, explicou Shabrawy. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mais de 125 milhões de meninas e mulheres sofreram algum tipo de mutilação genital em 29 países da África e do Oriente Médio. Outros 30 milhões de meninas correm o risco de sofrê-la nas próximas décadas.

“No Egito, o apoio geral à mutilação genital feminina está diminuindo e a prática se reduz lentamente”, segundo Shabrawy. Mas a queda é mínima nesse país de 83 milhões de habitantes. “A prevalência diminuiu de 76%, em 2005, para 74%, em 2008, para as meninas entre 15 e 17 anos. São necessários esforços coletivos para avançar para a eliminação dessa prática nociva”, destacou.

De fato, as mutilações continuam apesar de estarem proibidas desde 2007, quando uma menina de 11 anos morreu em uma clínica particular enquanto era submetida à operação. A lei prevê pena de até três anos de prisão por desfigurar ou danificar o corpo humano. A Pesquisa Demográfica e Sanitária do Egito, realizada em 2005, mostra que as famílias pobres das zonas rurais do Alto Egito são as mais propensas à prática. O estudo indica que 80,7% das jovens de 15 a 19 anos foram mutiladas, e essa proporção aumenta para 87,4% entre as mulheres de até 24 anos.

A mutilação acabou com o casamento de Abeer Masoud, de 30 anos, natural de Al Monofiya. “Decidi não me casar novamente devido à pressão física e psíquica pela qual passei, sobretudo depois que minha situação se espalhou pelo povoado. Ninguém me propôs casamento desde que me divorciei”, contou à IPS. As mulheres mutiladas vivem com suas consequências para toda a vida.

A ablação “consiste em seccionar quatro zonas dos genitais externos da mulher. Uma delas, o clitóris, é o principal responsável pela sensibilidade durante o coito, e sua ausência é o que causa problemas conjugais”, explicou Shabrawy. “A mutilação impede o prazer sexual, e o coito com frequência termina em congestão pélvica, dor e secreções vaginais, além de tensões emocionais e psicológicas”, enfatizou a médica. Envolverde/IPS