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Curdas fazem uma dupla revolução na Síria

 Mulheres trabalhando para mulheres em Qamishli, nordeste da Síria. Atrás, o rosto de Abdulah Ocalan. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

Mulheres trabalhando para mulheres em Qamishli, nordeste da Síria. Atrás, o rosto de Abdulah Ocalan. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Qamishli, Síria, 29/10/2013 – “Casei aos 14 anos e com 20 já tinha quatro filhos”, recorda Nafia Brahim. Aos 50 anos, essa curda da Síria trabalha para que nenhuma outra mulher deixe de ser dona de seu próprio destino. Brahim é uma das 12 integrantes da assembleia que gerencia o Centro para a Formação e Emancipação da Mulher de Qamishli, cidade que fica 680 quilômetros a nordeste de Damasco. Sua ação é multidisciplinar. “Organizamos oficinas de alfabetização em língua curda, de costura, informática, ginástica para grávidas, tudo dirigido por e para mulheres”, detalhou à IPS.

Brahim acrescentou que o curso mais procurado é “mulher e direitos”. A “emancipação da mulher começa por ela compreender que tem direito de se emancipar, ser um indivíduo capaz de dirigir sua própria vida”, assegurou a ativista, com o entusiasmo de quem passou por esse processo há muito tempo.

Não é fácil. Após a rebelião de 2011 contra o governo da Síria, os curdos que vivem nesse país apostaram em uma neutralidade que os leva a enfrentar tanto o regime quanto a oposição. Desde julho de 2012, controlam as regiões em que são maioria, no norte, onde desfrutam de níveis de autogoverno que lhes permitem desenvolver iniciativas como esse centro para a mulher. No momento, o papel feminino nessa região é palpável a partir da liderança do Partido da União Democrática (PYD), majoritário entre os curdos da Síria.

“Todas nossas organizações estão divididas em cotas de 40% para mulheres, 40% para homens e 20% para indivíduos, independente de seu sexo”, disse à IPS a copresidente do PYD, Asia Abdala. As razões devem ser buscadas na dupla revolução curda na Síria, afirmou. “De um lado estão nossas reivindicações como povo, selvagemente reprimido por Damasco durante décadas. De outro, as das mulheres em seu conjunto. E não vamos cair no erro de esperar a guerra acabar para recuperar nossos direitos”, destacou. Há 16 centros de assistência à mulher distribuídos pelo Curdistão da Síria, pontuou.

As mulheres aqui são muito mais visíveis do que em qualquer outro ponto do Oriente Médio. Elas vestem o uniforme verde da recém-criada polícia curda, o azul do serviço de coleta de lixo e o de camuflagem das Unidades de Proteção Popular, uma milícia já convertida em autêntico exército. São jornalistas em formação ao ritmo que marca a guerra, professoras de idiomas, ativistas, como Ilham Ahmet, porta-voz do Movimento da Sociedade Democrática (TEV-DEM), que reúne partidos políticos como o PYD e um grande número de coletivos sociais, inclusive os que defendem os direitos da mulher.

“A libertação da sociedade em seu conjunto começa pela mulher. É nossa primeira oportunidade de conseguirmos nossos direitos e não vamos desperdiçá-la”, afirmou Ahmet. Embora os avanços tenham sido substanciais, todas no centro de Qamishli sabem que a sua será uma corrida de fundo. “Desde que abrimos esse centro, há quase dois anos, ajudamos mais de 150 mulheres. A maioria fugindo de um casamento não desejado, muitas delas meninas”, recordou Faiza Mahmud, de 55 anos.

“N. Z., casada aos 15 anos com um homem de 37 que bateu nela e levou o filho do casal”, lê Mahmud no livro de registros. “R. T., de 16, violada e abandonada na Turquia pelo marido de 43… São dezenas de casos como esses”, descreve. “Oferecemos apoio legal e econômico e mediamos com as famílias para que se integrem em uma sociedade que as rejeitou”, contou a mais veterana do grupo, junto ao enorme mural com o rosto de Abdulah Ocalan, líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e preso na Turquia.

“Ocalan foi o único líder do Oriente Médio que defendeu os direitos da mulher”, afirmou energicamente Mahmud, transmitindo uma simpatia, compartilhada por todo o TEV-DEM, em relação a esse movimento guerrilheiro, fundado na Turquia em 1978. Nuha Mahmud assegurou que as mulheres árabes e cristãs também se aproximam do Centro em busca de ajuda. “Frequentemente temos que mediar com a diocese local para que facilite o divórcio, já que para os cristãos é muito mais complicado do que para os muçulmanos”, explicou essa voluntária de 35 anos, “felizmente casada”.

Nos sete meses em que trabalha aqui, disse ter ajudado um grande número de vítimas de violência sexual. “São casos terríveis porque a mulher violada, frequentemente menor de idade, é repudiada inclusive por sua família”, e muitas das vítimas não reconhecem ter sofrido um ataque sexual, acrescentou Nuha Mahmud.

Seu testemunho é corroborado pelo informe divulgado em maio pela Federação Internacional de Direitos Humanos, denunciando o elevado número de violações sexuais cometidas na Síria, tanto por agentes do governo quanto da oposição. O “estigma social das vítimas continua sendo muito forte na sociedade síria”, afirma o documento.

Aos 16 anos, Aitan Hussein conhece essa realidade bem de perto. A mais jovem do grupo é, segundo suas companheiras, “peça fundamental” para ajudar jovens de sua idade. “O trabalho conjunto entre mulheres de diferentes idades me permite ter uma visão muito ajustada do sofrimento de cada geração”, disse Hussein, que divide seu trabalho no centro com os estudos secundários.

Essa jovem ativista disse se sentir afortunada, já que sua família “não imporá nem casamento nem carga extra de nenhum tipo”. Porém, não parece ser suficiente para ela. “Não podemos ficar de braços cruzados enquanto os abusos contra a mulher continuam. Temos que seguir lutando para que nada disso volte a ocorrer, nem aqui nem em nenhuma parte”, destacou. Envolverde/IPS