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A Dama da Birmânia põe seu encanto à prova

A ganhadora do prêmio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi, está sob escrutínio público após embarcar em uma campanha para as eleições de 2015. Foto: Amantha Perera/IPS
A ganhadora do prêmio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi, está sob escrutínio público após embarcar em uma campanha para as eleições de 2015. Foto: Amantha Perera/IPS

 

Rangun, Birmânia, 1/4/2014 – O birmanês Uhla Min vive há um quarto de século sob o feitiço da Dama, popular apelido com que é conhecida a líder pró-democrática Aung San Suu Kyi, prêmio Nobel da Paz. Seu vínculo com ela e com seu partido, a Liga Nacional pela Democracia (LND), remonta ao final da década de 1980, quando Suu Kyi lançou uma campanha para livrar a Birmânia do regime militar.

Min, atualmente com 75 anos, recorda claramente que ouviu Suu Kyi falando no famoso Pagode Shwedagon na ex-capital Rangun, e também de ter corrido para fugir dos soldados que perseguiam os manifestantes nas ruas. Ele perdeu seu cargo no governo por apoiar a LND. Min foi para a prisão em julho de 1989, quando foi condenado à prisão domiciliar. Nos 25 anos seguintes suas vidas seguiram paralelas. Ela estaria confinada em sua casa de Rangun, enquanto ele passaria entrando e saindo da prisão. Ele foi torturado, como muitos outros ativistas da LND.

“A prisão era um horror interminável, nos batiam até desmaiarmos”, contou à IPS Min, agora presidente do comitê organizador na sede da LND em Rangun. Como muitos outros prisioneiros que enfrentam um futuro sombrio, ele tinha muitas esperanças. “Todos sabíamos que a Dama estava conosco, ela era como essa pequena entrada de esperança naquele lugar tão escuro em que nos encontrávamos”, afirmou.

O encanto da Dama não diminuiu para ele, como para muitos outros. No começo de março, Zaw Linn Oo, diretor de programas na não governamental Organização para o Desenvolvimento Sopyay Myanmar, ficou petrificado na cadeira no lobby de um hotel onde Suu Kyi lançou sua nova Fundação Suu. Não a ouvia falar pessoalmente há mais de uma década. “Estou tão emocionado”, disse Oo depois de ouvir aquela que é um símbolo de democracia no país.

Os vínculos de Oo com a LND não foram diretos; recorda ter participado das grandes reuniões de 1988 e 2008. “Nunca fui ativista de tempo integral”, disse, acrescentando que “ela é a única que foi leal conosco”. No escritório da LND, U Thein, uma mulher de aproximadamente 30 anos, compartilhou esse sentimento. Ela se uniu ao partido como voluntária há uma década, pouco depois de terminar os estudos. Sua família foi contra.

“Eles consideravam que era perigoso, e era. Prendiam pessoas apenas por dizerem seu nome (o de Suu Kyi) em público”, contou à IPS. Segundo U Tehin, o que a atraía em Suu Kyi era que atacava a direção corrupta e violenta sem recorrer ela mesma à violência. “Cada vez que via seu retrato ou ouvia sua voz sentia muita paz”, acrescentou. Ela se integrou ao partido, então clandestino, de Suu Kyi, e abandonou suas ideias de buscar um emprego no governo.

Essa imagem tão persistente da Dama como campeã dos direitos ao estilo gandhiano se choca com a mais prática pela qual opta agora na política. A Birmânia experimentou uma abertura sob a liderança do presidente Thein Sein, apoiado pelo exército, e Suu Kyi recuperou sua liberdade em novembro de 2011. A líder democrática então embarcou em uma campanha para chegar ao governo. O desafio serão as próximas eleições de 2015.

Agora, Suu Kyi tem que entrar no mundo da “realpolitik”. Ela “tem diante de si uma decisão difícil. Não há ninguém tão carismático como ela que possa liderar o partido, não há ninguém que tenha tanta sorte como ela. Mas ao entrar na política da rua permitiu que sua imagem de símbolo imaculado da democracia ficasse exposta a possíveis ataques”, opinou um diplomata ocidental.

Suu Kyi é criticada por não adotar uma posição mais severa contra a violência racial que existe no país. E alguns dos que apoiam seu partido dizem agora que os anos de isolamento a tornaram intransigente. Ela também enfrenta obstáculos legais para chegar à Presidência da Birmânia: o Artigo 59 da Constituição de 2009 estabelece que não pode fazê-lo alguém cujo cônjuge ou filhos sejam cidadãos de outro país. Suu Kyi reclama que a carta magna seja emendada, mas ainda não esclareceu se lançará uma campanha a respeito antes das eleições.

“Um político pensa nas próximas eleições, um estadista pensa na próxima geração”, afirmou ao apresentar sua fundação. “Tudo que temos que lembrar é que as eleições de 2015 serão apenas um degrau, e que este país tem pela frente uma longa viagem”. A propósito das críticas de que é muito maleável em relação à violência racial, Suu Kyi disse que a resposta à maioria dos problemas que a Birmânia enfrenta será estabelecer o regime de direito.

Min não tem dúvidas de que ela, se eleita presidente, herdará um caos monumental. “Este é um país dividido governado pelos militares há mais de 50 anos. Suu Kyi não poderá mudá-lo da noite para o dia”, pontuou. Os próximos meses serão cruciais para definir como as futuras gerações lembrarão dela, acrescentou. “Sem importar o que acontecerá, para nós ela sempre foi e será pura”, assegurou. Envolverde/IPS