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Estados Unidos e ONU em diálogo de surdos sobre a Síria

Os Estados Unidos não podem intervir militarmente na Síria sem o apoio do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Bomoon Lee/IPS
Os Estados Unidos não podem intervir militarmente na Síria sem o apoio do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Bomoon Lee/IPS

 

Washington, Estados Unidos, 30/8/2013 – Dezoito meses depois que o governo de George W. Bush lançou a guerra contra o Iraque, em março de 2003, o então secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, qualificou a invasão de “ilegal” e de “violação da Carta” do fórum mundial, pois Washington não tinha autorização do Conselho de Segurança.

Annan pagou um alto preço por essas palavras, recordou James A. Paul, que há dez anos é observador na ONU como diretor do Global Policy Forum, com sede em Nova York. O governo de Bush (2001-2009) ficou de tal modo encolerizado que colocou Annan sob intenso ataque. Praticamente toda sua equipe de colaboradores foi obrigada a renunciar por pressões de Washington, afirmou Paul.

Poderia o atual secretário-geral, Ban Ki-moon, seguir os passos de Annan, se os Estados Unidos atacarem a Síria sem o sinal verde do Conselho de Segurança da ONU? A resposta de Paul à IPS foi categórica: “Embora se pisoteie boa parte do direito internacional, podemos esperar que Ban aja com cautela e não diga nada de concreto. Essa é sua inclinação natural. E, além disso, seguramente olha para trás e recorda o que aconteceu com seu antecessor”.

Enquanto o governo de Obama já faz soar os tambores de guerra, especula-se se os Estados Unidos tentarão passar por cima do Conselho de Segurança, pois qualquer resolução invocando o Capítulo 7 da Carta da ONU, que autoriza ações militares, contaria com veto da Rússia e, provavelmente, também da China. A Grã-Bretanha fez circular um projeto de resolução sobre a Síria, cujo governo é acusado de ter lançado, no dia 21 deste mês, um suposto ataque químico contra população civil.

Entretanto, o rascunho pode morrer de morte natural antes que o Conselho se reúna formalmente ou acabe vitimado por um veto. A Rússia, que continua prestando apoio ao sitiado presidente sírio, Bashar al Assad, já fez uso do veto em três ocasiões, junto com a China, para impedir sanções contra Damasco. A ONU como tal também parece estar em rumo de colisão com os Estados Unidos, que já declararam que a Síria usou armas químicas, passando por cima de uma equipe de inspetores das Nações Unidas que estão em território sírio tentando determinar o que aconteceu.

Em entrevista coletiva no Palácio da Paz, em Haia, Ban disse que o uso de armamento químico por parte de quem quer que seja, pelas razões que forem e sob qualquer circunstância, constitui uma violação atroz do direito internacional. Porém, é essencial estabelecer os fatos, acrescentou o secretário-geral, se distanciando dos Estados Unidos. “Uma equipe de investigação da ONU está agora no terreno fazendo precisamente isso”, destacou. Apenas um dia depois do suposto ataque, a equipe recolheu amostras valiosas e entrevistou vítimas e testemunhas. Mas precisa de tempo para realizar seu trabalho, afirmou Ban.

Esta reclamação aparece em meio a informes de que Washington já solicitou ao secretário-geral que retire sua missão de inspetores. O ataque químico e os debates em torno do Conselho de Segurança recordam episódios anteriores nos quais Washington buscou apoio para suas guerras, apontou Paul. “Quem pode esquecer a apresentação sobre o Iraque por parte do então secretário de Estado, Collin Powell, no dia 5 de fevereiro de 2003, repleta de falsidades e sobre a qual mais tarde se manifestou arrependido?”, pontuou.

O chefe da missão de inspeção da ONU no Iraque naquela época, Hans Blix, se referiu com eloquência à pressa para iniciar a guerra contra a Síria. Em relação a como Washington e Londres se adiantaram ao processo de inspeção, Blix alertou que “desta vez não podemos confiar nos pronunciamentos interessados de Estados poderosos. Os fatos devem ser considerados de maneira desapaixonada”. Os Estados Unidos não são a polícia do mundo, ressaltou.

Em Haia, Ban exortou de forma implícita por uma ação contra a Síria adotada pelo Conselho de Segurança, e não de forma unilateral. “Respeitemos a Carta da ONU”, afirmou. É preciso perseverar em todos os caminhos que levem as partes à mesa de negociação, afirmou o secretário-geral. O enviado da ONU e da Liga Árabe, Lakhdar Brahimi, prossegue em sua tarefa, indicou. Contudo, insistiu, acima de tudo, o Conselho de Segurança deve honrar suas responsabilidades morais e políticas estabelecidas na Carta.

Perante jornalistas em Genebra, Brahimi foi mais categórico. “O direito internacional estabelece que a ação militar deve ser tomada por decisão do Conselho de Segurança. O que acontecerá depois? Não sei”, afirmou, atenuando seus comentários ao afirmar que “o presidente Obama e o governo norte-americano não são conhecidos por seu gatilho fácil”.

Para Paul, a situação na Síria sob as normas internacionais é clara. A Carta da ONU autoriza apenas dois tipos de intervenção militar contra um Estado: em defesa própria diante de um ataque e em resposta a uma resolução do Conselho de Segurança. Nenhum dos dois se aplica neste caso, porque uma resolução, se for proposta, será vetada, opinou Paul. Portanto, Washington está em busca de outras justificativas e revisa intervenções passadas para reciclar argumentos.

Um deles se refere à política moral e à “guerra justa”, que promoveu o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair (1997-2007), no famoso discurso que fez em 1999 em Chicago, defendendo os bombardeios contra a Iugoslávia, então em guerra com sua província autônoma de Kosovo. Este perigoso enfoque habilita países poderosos a atacarem outros com base em supostos julgamentos morais, “julgamentos que, sabemos, sempre têm origem em seus próprios interesses”, enfatizou Paul.

Outra linha de argumentação, menos atraente, indica que a ação militar é ilegal, mas legítima. Foi esgrimida depois da guerra de Kosovo, por um grupo de juristas, mas acabou considerada perigosamente vaga e subjetiva. Um terceiro arrazoamento, que agora parece mais efêmero, toca na “responsabilidade de proteger”: se os Estados Unidos falham na proteção de seus cidadãos, a comunidade internacional deve agir.

Também aqui o terreno é escorregadio, afirmou Paul. A responsabilidade de proteger, articulada em 2005, é confusa e não justifica agir sem autorização da ONU. Por isso Washington está em uma posição embaraçosa, agravada pelo fato de a Liga Árabe proporcionar uma justificativa regional para a ação militar, acrescentou.

Toda discussão sobre a paralisia do Conselho de Segurança ignora a questão do veto que, usado como ameaça, bloqueia as ações do órgão quase diariamente, e é intensamente brandido pelos Estados Unidos, como pelos demais membros permanentes (China, França, Grã-Bretanha e Rússia). “Mais bombas não resolverão os problemas da Síria, nem colocarão em marcha um governo novo e mais responsável. Somente prolongará a matança”, concluiu Paul. Envolverde/IPS