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A guerra do Sri Lanka não terminou para mulheres tamis

Mulheres na aldeia de Allankulam cavam um poço de água comunitário. Foto: Amantha Perera/IPS
Mulheres na aldeia de Allankulam cavam um poço de água comunitário. Foto: Amantha Perera/IPS

 

Batticaloa/Killinochchi, Sri Lanka, 1/11/2013 – A guerra civil do Sri Lanka chegou ao fim há quatro anos, mas as mulheres ainda travam uma dura batalha nas áreas que viveram o conflito, no leste e norte deste país insular. Elas lutam por suas necessidades básicas e as de suas famílias, mas também para salvar sua honra. O conflito entre o grupo separatista Tigres para a Libertação da Pátria Tamil-Eelam (LTTE) e o governo, de 1983 a 2009, deixou muitas mulheres na chefia de suas famílias. Seus maridos morreram, desapareceram ou ficaram incapacitados.

A crítica situação financeira também fez aumentar a exploração de mulheres. As cingalesas que encabeçam suas famílias “estão desesperadas pela falta de dinheiro, e algumas apelam para o trabalho sexual ou para oferecer serviços sexuais em troca de favores”, diz um informe da organização internacional Minority Rights Group (MRG), com sede em Londres.

O Centro para a Cura Holística em Killinochchi, administrado pela Igreja Anglicana, informou que há cerca de quatro meses se desconhece o paradeiro de 15 mulheres que foram contatadas por agentes trabalhistas fora de sua província. Teme-se que tenham caído em redes de prostituição forçada.

As mulheres também são as primeiras vítimas da frustração masculina pela falta de trabalho, segundo pesquisa feita em junho pelo Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha) da Organização das Nações Unidas (ONU). “Há crescentes taxas de violação sexual e de gênero, devido principalmente ao alcoolismo e à frustração causada pelo desemprego”, diz o relatório da visita do Ocha a sete distritos nas províncias do norte e leste do Sri Lanka.

Além disso, acrescenta o documento, “há cada vez mais casos de casamentos precoces e violações”, acrescenta o estudo, elaborado após uma viagem de duas semanas de funcionários do Ocha por essas províncias. Uma das preocupações que constam do informe, de 19 páginas, diz respeito aos perigos enfrentados por comunidades vulneráveis, como meninos e meninas, deficientes, idosos e mulheres chefes de família.

Segundo a MRG, existem pelo menos 80 mil viúvas nas províncias do norte e leste, que têm uma população total de 2,5 milhões de pessoas. Na Província do Norte, palco dos piores confrontos nos últimos dias da guerra civil, há 40 mil mulheres chefes de família, segundo o Centro para as Mulheres e o Desenvolvimento, com sede em Jaffna. “É uma vida muito dura a dessas mulheres”, disse à IPS a diretora do Centro, Saroja Sivachandran. “Precisam alimentar suas famílias em uma região onde inclusive os homens aptos têm dificuldades para encontrar trabalho”.

Um estudo realizado em julho pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) concluiu que apenas 9% das 138.651 famílias reassentadas na Província Norte após o conflito tinham um integrante com emprego permanente. “A renda mensal média por pessoa é equivalente a US$ 17. A linha de pobreza em abril deste ano era de US$ 28, diz o informe. “Pode-se imaginar a dificuldade que deve ser para uma mulher com mais de 30 anos, que nunca trabalhou, procurar emprego aqui”, pontuou Sivachandran.

Segundo Farah Mihlar, autora do informe da MRG, não há investimentos importantes para que as chefes de família gerem renda na região. “É necessária uma avaliação adequada das necessidades das famílias encabeçadas por mulheres, para então criar oportunidades de emprego. Além disso, as próprias mulheres devem ser parte dessas decisões”, opinou.

Sivachandran apontou outro aspecto do problema: as cingalesas que ficaram sem companheiro suportam as condições de uma sociedade tamil patriarcal, que não muda apesar do papel destacado que muitas delas desempenharam nas fileiras do Tigres.

Ninguém melhor do que Kaleiwani (nome fictício), uma tamil na faixa dos 30 anos que integrou a ala feminina do LTTE, para explicar o que isso significa. “Quando tinha uma arma, todos me respeitavam. Hoje não sou ninguém, sou pior do que um cão perdido”, afirmou. Ela integrou o grupo rebelde entre 2008 e 2009, quando as forças do governo lançaram a última ação concertada, que acabou derrotando os rebeldes.

Kaleiwani sobreviveu a uma batalha com um ferimento grave na mão. Passou algum tempo em centros de reabilitação antes de voltar para sua casa, em uma aldeia do distrito de Batticaloa, na Província Leste. Mas, ao chegar, descobriu que ninguém mais a queria, nem mesmo sua própria família. Sua irmã, casada com um funcionário do governo, lhe pediu para que não se encontrassem mais, para evitar possíveis suspeitas das autoridades.

Kaleiwani também sofreu assédio. Em um trâmite para obter seus documentos, um funcionário público “não deixava de falar como meu corpo era bonito e que poderíamos chegar a um acordo se eu estivesse disposta a fazer certos favores”, contou à IPS.

Outra mulher de Allankulam, aldeia do distrito de Mullaitivu, na Província Norte, contou uma experiência semelhante. Essa viúva com três filhos, que não quis se identificar, começou a construir uma nova casa depois de regressar à sua aldeia, e precisava de um título de propriedade.

“O escritório de terras do governo me ajudou muito”, afirmou, “mas quando fui à administração do distrito o oficial, fui acusada de ter deitado com um funcionário para conseguir minha documentação”. Ela não respondeu nada porque estava com seus filhos. Se estivesse sozinha “teria esbofeteado o oficial”, ressaltou. Envolverde/IPS