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Hidroeletricidade ameaça a minguante pesca do Camboja

Uma barca no rio Sesan. Foto: Michelle Tolson/IPS
Uma barca no rio Sesan. Foto: Michelle Tolson/IPS

 

Província de Ratanakiri, Camboja, 20/12/2013 – “Prefiro a represa aos peixes”, diz o agricultor Ton Noun sobre o projeto de construir uma hidrelétricas no rio Sesan, perto de sua casa no nordeste do Camboja. Logo em seguida ri e pergunta: “Quais peixes?”. Nas turvas águas escuras do rio, já escasseiam os peixes e ele compra barato os que chegam do vizinho Vietnã. Enquanto isso, a eletricidade prometida pela represa agora é cara. “A eletricidade é cara porque a aldeia não a tem”, disse Ton à IPS.

O Camboja, um dos países menos avançados da Ásia, carece de uma rede elétrica. Apenas 26% da população tem acesso à eletricidade fornecida pelo governo. O restante a obtém de operadores privados ou de geradores, ou, ainda, vive sem luz. Os operadores privados cobram dos consumidores até 75 centavos por quilowatt hora. Ton paga US$ 15 mensais pela eletricidade que obtém de um gerador, um custo muito alto em um país onde 15 milhões de habitantes vivem com US$ 2, ou menos, por dia.

Mas o que Ton não sabe é que, tão logo a represa fique pronta, os peixes diminuirão ainda mais para os cambojanos que como ele têm no pescado seu alimento básico, afirmam várias organizações não governamentais. “Simplesmente dizem ‘vamos trazer eletricidade’ e não nos consultam em nada”, contou à IPS a ativista Ame Trandem, da organização não governamental International Rivers.

A eletrificação rural é importante “para reduzir a pobreza, melhorar o nível de vida e fomentar o desenvolvimento econômico”, diz o governo no informe Políticas de Eletrificação Rural no Camboja, divulgado este ano. O governo pretende “que todas as aldeias do Reino do Camboja tenham acesso a eletricidade de qualquer tipo até 2020; e que pelo menos 70% de todas as famílias tenham acesso a eletricidade com qualidade de rede até 2030”, acrescenta.

A represa próxima à casa de Ton será construída na confluência dos rios Sesan e Srepok, 25 quilômetros águas acima da cidade de Stung Treng. Ali se une o rio Sesong, antes de desembocar no Mekong, no que é conhecido com0 a bacia dos rios 3S.

As hidrelétricas se apresentam como uma solução para essa nação sedenta por eletricidade, e paradoxalmente sua minguante reserva pesqueira favoreceu a causa das represas. Mas o especialista em pesca Ian Baird critica esta visão de curto prazo. “Os peixes podem se recuperar com um manejo adequado, mas não, se há estruturas”, afirmou. “Desde que o Khmer Vermelho (1975-1979) proibiu a pesca comercial em 1976, essa temporada registrou capturas sem precedentes”, acrescentou.

Durante a fome dos anos 1970, os cambojanos não tiveram acesso ao pescado, sua fonte básica de proteína, por culpa dessa política do governo khmer. Calcula-se que a proibição contribuiu para a morte por inanição de aproximadamente dois milhões de pessoas. É um exemplo da dependência de proteínas deste país em relação ao pescado. Quando no Camboja e em seu vizinho ao norte, o Laos, a desnutrição afeta 40% da população infantil, Baird pensa que é perigoso limitar mais os já minguantes recursos pesqueiros.

Meach Mean, coordenador da Rede de Proteção dos Rios 3S, disse que a maioria dos indígenas que vivem na bacia não tem acesso à informação. O povo originário tampuan carece de linguagem escrita. Ele mesmo é um tampuan do Laos, que sofreu o impacto das represas em 1996, quando o Vietnã construiu uma na parte alta do Sesan, nas cataratas de Yali. Seus responsáveis liberaram a água sem avisar as comunidades instaladas corrente abaixo, causando numerosas mortes e perdas de cultivos e animais.

“Desde a construção da represa vietnamita, há cada vez menos peixes. Agora, praticamente não há nenhum, porque o nível do rio sobe e baixa muito”, disse à IPS um homem de cerca de 30 anos que vive na aldeia de Kalan, no Laos. “Na temporada seca quase é possível atravessar o rio caminhando”, acrescentou. Em sua pequena casa de madeira, com uma rede de pescador sem usar pendente do teto, afirmou: “Não queremos a represa porque causa inundações, e isso mata cultivos e animais. Tememos a água”.

Outros três laosianos que o acompanham concordam e também se negam a dar seus nomes por medo de represálias do governo. “Vivemos em uma área afastada e as pessoas nada sabem sobre nós. Apenas 30% das pessoas daqui sabem sobre a represa. Ouço que pessoas corrente abaixo falam dela”, disse o homem. Todos duvidam que o projeto vai gerar eletricidade barata.

O Laos também pretende construir a represa de Don Sahong, no rio Mekong, a apenas dois quilômetros da fronteira com o Camboja. Este rio, o mais longo da Ásia e que passa por seis de seus países, flui através de uma série de canais que se convertem em uma catarata pouco antes de chegar ao Camboja, de onde segue pelo leste até o Vietnã e daí para o mar.

O governo do Laos busca aproveitar sua energia com a represa e vendê-la para Camboja ou Tailândia. A central projetada ficará sobre um dos únicos pontos por onde transitam os peixes todo o ano, o que poderá pôr em perigo a segurança alimentar do Baixo Mekong. Apesar disto, um operador turístico do Laos em uma ilha vizinha à projetada represa disse alegremente à IPS que “a maioria das pessoas quer a represa”. Segundo Baird, o governo pode prender os aldeões que se manifestarem contra.

Após uma visita ao lugar, funcionários cambojanos manifestaram seu descontentamento pelo impacto ambiental e pediram ao governo laosiano que interrompa o projeto, pontuou Trandem. Além disso, “o Camboja não tem como usar essa eletricidade (da futura represa Don Sahong), pois carece de uma rede para levá-la até as cidades”, ao contrário do que ocorre no Laos e no Vietnã, destacou.

“O Banco Mundial e o Banco Asiático de Desenvolvimento propuseram que os países da área compartilhassem a eletricidade. Mas o problema é que não existe um plano-mestre para isso, o que é negativo para as nações que dependem dos rios para tudo”, disse a ativista da International Rivers. Envolverde/IPS