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Imigrantes têm o sonho europeu barrado em Trípoli

Dois varredores de origem subsaariana com seus carrinhos de lixo na Cidade Velha de Trípoli, capital da Líbia. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Dois varredores de origem subsaariana com seus carrinhos de lixo na Cidade Velha de Trípoli, capital da Líbia. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Trípoli, Líbia, 19/12/2014 – É fácil encontrar Saani Bubakar. Todos os dias, e sempre vestindo o característico uniforme cor laranja dos funcionários da limpeza, empurra seu carrinho pelas estreitas ruas da cidade velha da capital da Líbia. Assim tem sido nos últimos três anos de sua vida.

“Sou de uma aldeia muito pobre do Níger, onde nem mesmo tem água corrente”, contou à IPS esse jovem de 23 anos durante uma pausa em seu trabalho. “Nossos vizinhos nos contaram que um de seus filhos estava trabalhando em Trípoli, por isso me animei a vir também”, acrescentou.

Dos 250 dinares líbios que recebe por mês (US$ 154), Bubakar manda mais da metade para sua família. Ele conta que o alojamento é por conta do município. “Somos 50 em um apartamento perto daqui”, explicou, garantindo que “logo” voltará ao seu país, não tanto pelas precárias condições de trabalho, mas devido à instabilidade em que a Líbia se encontra atualmente.

Três anos depois do levante que acabou com o regime e a vida de Muammar Gaddafi (1969-2011), a Líbia vive em um estado de convulsão política que deixou o país à beira da guerra civil. Há dois governos e dois parlamentos: um com sede aqui em Trípoli e outro na cidade de Tobruk, 1.200 quilômetros a leste da capital. Este último conta com o reconhecimento internacional, após ser eleito em duas votações realizadas em junho deste ano, que só tiveram 10% de participação dos eleitores.

Trata-se de um cenário no qual lutam diferentes milícias agrupadas em duas alianças paramilitares: Fayer (amanhecer, em árabe), liderada pelas brigadas de Misrata, que atualmente controlam Trípoli, e Karama (dignidade), dirigida por Jalifa Haftar, um ex-general do exército líbio. A população e sobretudo os trabalhadores estrangeiros são vítimas do fogo cruzado.

“O pior é trabalhar à noite porque os combates na cidade começam quando o sol se põe”, explicou Odar Yahub, companheiro de trabalho e de alojamento de Bubakar. Com 22 anos, ele disse que voltará para Níger quando tiver reunido dinheiro suficiente para se casar. Provavelmente mais tarde do que o previsto. “Estamos há quatro meses sem receber, e ninguém nos deu uma explicação”, queixa-se o jovem enquanto descarrega seu carrinho no caminhão de lixo.

Embora a maioria dos varredores seja de origem subsaariana, também há muitos outros que chegaram da distante Bangladesh. É o caso de Aaqib, que prefere não dar o nome completo. Há quatro anos trabalha no bairro de Souk al Juma, leste de Trípoli, e mantém sua família, em Daca, com o envio de quase todo o seu salário de 450 dinares líbios (US$ 276). Ele também está há quatro meses sem receber.

“Claro que sonho em ir para a Europa, mas muitos morreram no mar”, afirmou Aaqib, de 28 anos. “Iria somente de avião, e com os documentos em dia”, destacou. Para isso precisa recuperar seu passaporte, que está com os contratantes. Todos os trabalhadores estrangeiros da limpeza entrevistados pela IPS afirmaram que seu documento de identidade está confiscado.

No mesmo bairro de Souk al Juma fica o escritório de Mohamed Bilkhaire, ministro do Emprego do governo de Trípoli, que não se surpreende com a aparente contradição entre 35% de desocupação no país, segundo seus dados, e que todos os trabalhadores de limpeza sejam estrangeiros. “Os árabes não varrem por razões socioculturais, nem aqui, nem no Egito, na Jordânia, no Iraque… Precisamos de estrangeiros que façam esse serviço”, explicou o ministro, que está no cargo há dois meses.

Sobre o confisco dos passaportes, afirmou que “são guardados como garantia, porque a maioria dos trabalhadores estrangeiros quer seguir para a Europa”. Segundo dados da Frontex, a agência responsável pelas fronteiras externas da União Europeia, dos mais de 42 mil imigrantes que desembarcaram na Itália durante os quatro primeiros meses deste ano, 27 mil procediam da Líbia.

A maioria dos que trabalham na coleta de lixo na capital da Líbia o fazem em condições de semiescravidão. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
A maioria dos que trabalham na coleta de lixo na capital da Líbia o fazem em condições de semiescravidão. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Um informe divulgado em junho pela organização Humang Rights Watch (HRW) afirma que milhares de imigrantes permanecem retidos em centros de detenção líbios onde são vítimas de torturas e violações constantes. “Os detidos nos descreveram como os guardas revistam as mulheres nuas e atacam brutalmente os homens”, diz no documento Gerry Simpson, alto investigador dessa organização humanitária para os refugiados.

Sobre os trabalhadores com contrato, como no caso dos varredores de rua, Hanan Salah, pesquisadora da HRW para a Líbia assegurou à IPS que “o desaparecimento do sistema judicial em muitas regiões do país faz com que as condições trabalhistas abusivas fiquem impunes perante a lei”.

Shokri Agmar, advogado em Trípoli, fala de uma “total falta de defesa”. Em seu escritório em Gargaresh, oeste da capital, explica que “o principal problema dos trabalhadores estrangeiros na Líbia não é o mero desamparo legal, mas o fato de carecerem de uma milícia que os proteja”. Gagaresh é precisamente um dos bairros onde se reúne diariamente um grande número de imigrantes, à espera de serem escolhidos para trabalhar em serviços de construção.

Aghedo chegou da Nigéria há três semanas. Para este jovem de 25 anos, Trípoli não passa de uma escala entre uma extenuante odisseia através do deserto do Saara e uma perigosa travessia por mar até a Itália. “Há dias em que nem mesmo nos pagam, mas em outros posso tirar até 100 dinares” (50 euros), contou este imigrante que segura uma pá na mão direita.

O jovem jamais baixa a guarda porque precisa distinguir entre dois tipos de picapes: as que oferecem um trabalho talvez remunerado e as da milícia local, que o levarão a um dos temidos centros de detenção.

“Sei que poderia trabalhar de varredor, mas muitos deles estão há meses sem receber e demoraris muito para reunir o dinheiro para uma passagem em um dos barcos” que levam imigrantes clandestinamente para a Itália, acrescentou Aghedo, sem desviar o olhar da estrada nem por um segundo. Envolverde/IPS