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Justiça incompleta para os marfinenses

Muitos marfinenses fugiram da violência que açoitou o país em 2010 e 2011. Estima-se que cerca de cem mil pessoas se refugiaram na vizinha Libéria, como esta família, radicada na localidade de Butuo. Foto: Jessica McDiarmid/IPS
Muitos marfinenses fugiram da violência que açoitou o país em 2010 e 2011. Estima-se que cerca de cem mil pessoas se refugiaram na vizinha Libéria, como esta família, radicada na localidade de Butuo. Foto: Jessica McDiarmid/IPS

Biyan, Costa do Marfim, 1/11/2013 – “Estamos tristes. Queremos de novo nosso presidente”, disse à IPS o marfinense Yao Amadine, em uma esquina de Abidyan, capital econômica deste país africano, depois que o Tribunal Penal Internacional (TPI) se negou a conceder liberdade condicional ao ex-mandatário Laurent Gbagbo (2000-2001). Gbagbo é acusado de ter cometido crimes contra a humanidade por sua suposta responsabilidade na crise pós-eleitoral de 2010 e 2011.

Mais de três mil pessoas morreram na violência desatada nesse país depois que Gbagbo se negou a aceitar a vitória de Allasane Ouattara, reconhecido internacionalmente como vencedor das eleições. Em junho, o TPI considerou que o caso contra Gbagbo não era suficientemente sólido e pediu ao promotor Fatou Bensouda que ampliasse suas investigações para apresentar mais evidências. A defesa aproveitou essa demora para solicitar a liberdade condicional do ex-presidente.

Durante semanas, os simpatizantes de Gbagbo esperaram ansiosos sua libertação. “Gbagbo prepara suas malas” e “Gbagbo regressará breve” eram algumas manchetes dos jornais marfinenses no dia 29. Nesse mesmo dia, de Haia chegou a notícia de que o TPI não aceitou o recurso para libertar o ex-presidente, que deverá permanecer detido à espera de um possível julgamento. Seus simpatizantes se sentiram desmoralizados. “Roubaram nosso presidente e não querem devolvê-lo. Bensouda não tem nenhuma prova. Gbagbo deve ser libertado”, afirmou à IPS Broue Jean, outro cidadão marfinense.

Os habitantes desse país da África ocidental seguem o processo no TPI com um misto de incompreensão e frustração. “A gente não entende o que está acontecendo”, disse à IPS o presidente da Coalizão Marfinense para o TPI, Ali Ouattara. “É preciso entender que essas decisões são parte de um longo processo no tribunal. Não compreendem os motivos por trás das decisões”, acrescentou.

Ouattara admitiu que o TPI não manteve uma comunicação adequada com os marfinenses. Porém, disse que o processo é a melhor oportunidade para que se faça justiça sobre o que ocorreu no país. Grupos de direitos humanos condenam a “justiça seletiva” que constatam nos tribunais da Costa do Marfim.

Em um informe divulgado em abril com o título Convertendo a Retórica em Realidade: Responsabilidade por Graves Delitos Internacionais na Costa do Marfim, a organização Human Rights Watch (HRW) denunciou parcialidade na hora de fazer justiça pela violência que varreu o país. Desde a crise, mais de 130 partidários de Gbagbo passaram por tribunais, e apenas um simpatizante de Allasane Ouattara.

Importantes organizações de direitos humanos dizem que o processo de reconciliação nacional no país está paralisado. Anistia Internacional, HRW e Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH) exigiram imparcialidade do sistema de justiça e pediram que também sejam responsabilizados partidários de Allasane Ouatrara por seus crimes. Porém, parece que Gbagbo será o único marfinense a passar por Haia.

Abidyan, capital econômica da Costa do Marfim, foi palco de violentos enfrentamentos depois das eleições de dezembro de 2010. Foto: Marc-André Boisvert/IPS
Abidyan, capital econômica da Costa do Marfim, foi palco de violentos enfrentamentos depois das eleições de dezembro de 2010. Foto: Marc-André Boisvert/IPS

O TPI também emitiu ordem de prisão contra a esposa do ex-presidente, Simone Gbagbo, mas o governo se negou a transferi-la argumentando que podia ser julgada em seu próprio país. As autoridades marfinenses ainda devem tomar uma decisão sobre outra ordem de prisão emitida pelo TPI. No dia 23 de setembro, o ministro da Justiça, Gnenema Coulibaly, informou que o TPI pediu a detenção de Charles Ble Goude, ex-integrante do grupo miliciano Jovens Patriotas, partidário de Gbagbo. Goude é acusado de violação e crimes contra a humanidade.

Na semana passada, a equipe legal de Goude exigiu do governo marfinense que o acusado fosse julgado no país. “Cremos que as cortes marfinenses estão capacitadas” disse aos jornalistas Kouadio N’Dry Claver, advogado de Goude. “Pedimos ao governo que tome a mesma valente e saudável decisão” que tomou no caso de Simone Gbagbo, acrescentou.

Por outro lado, foi anunciado o fechamento dos órgãos criados para investigar a violência pós-eleitoral. O porta-voz do governo, Bruno Koné, informou na semana passada que o mandato da Célula Especial de Investigação, criada em 2011, não será renovado ao se encerrar em dezembro. Os serviços policiais e judiciais estão capacitados para assumir seu papel, destacou. “A unidade foi criada em um momento particular. Agora a situação voltou à normalidade. Não há motivo para mantê-la”, disse.

Desde abril, muitos juízes e investigadores desse órgão foram transferidos para outros departamentos. Porém, Patrick Baudouin, advogado da FIDH declarou, em entrevista coletiva no dia 22, que o governo não apresentara “um argumento lógico para justificar o fim das atividades da unidade”. Também não será renovado o mandato da Comissão para o Diálogo, a Verdade e a Reconciliação, criada há dois anos.

A FIDH teme que os crimes cometidos durante a violência pós-eleitoral fiquem impunes. “É necessário fazer muito mais no lado de Ouattara. A Costa do Marfim sofreu muito para agora permitir a impunidade em qualquer dos lados”, ressaltou Baoudouin.

Entretanto, o presidente do Coletivo de Vítimas na Costa do Marfim, Issiaka Diaby, tem fé no sistema. “Creio que a negativa de dar liberdade condicional a Gbagbo é uma forma de garantir a paz social e a coesão, enquanto se faz justiça. Precisamos disso. Deve-se fazer justiça, não só para a crise pós-eleitoral de 2010 e 2011, mas também para os acontecimentos prévios”, opinou à IPS.

Esse país foi palco de uma guerra civil entre 2002 e 2007, quando o Movimento Patriótico da Costa do Marfim lançou uma ofensiva contra as forças leais a Gbagbo e assumiu o controle do norte. Contudo, segundo o informe de abril da HRW, “de 2003 em diante, os líderes políticos e militares dos dois lados implicados em atrocidades mantiveram seus postos com completa impunidade”.

“Devemos pôr fim a uma década de impunidade”, afirmou Diaby. “Lamentavelmente, não podemos pedir muito agora. Se o ministro diz que já não precisa da Célula Especial de Investigação, tudo bem, o respeitamos. Mas continuaremos vigiando para garantir que os tribunais e os investigadores realmente continuem o trabalho”, acrescentou. Envolverde/IPS