Líbia: uma guerra com nome e sobrenome

[media-credit name=”Patricz Baz / AFP Photo” align=”alignright” width=”300″][/media-credit]Washington, Estados Unidos, abril/2011 – Fiquei profundamente impressionado quando aos 11 anos vi que meu pai, que era médico, operava dia e noite para salvar as vidas de soldados alemães que lutaram para ocupar meu país, a Noruega, gravemente feridos por um torpedo que atingiu seu navio quando tentavam desembarcar. Meu pai dizia que o dever supremo de um médico é salvar vidas sem distinção alguma.

Um médico que cura apenas amigos e não inimigos é um participante da guerra ou um cúmplice. Uma organização que protege civis apenas de nosso lado, e não os do outro, não é humanitária, mas beligerante. De modo que não há nada de histórico na Resolução 1973 do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Histórica teria sido uma resolução para proteger os civis de todas as guerras, incluindo uma zona de restrição a voos sobre Gaza, Bahrein, Paquistão e Afeganistão. Porém, no mesmo dia em que foi aprovada a Resolução 1973, 17 de março de 2011, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi manchete de primeira página ao matar civis no Afeganistão, o que, pelo visto, é uma rotina diária.

O que está ocorrendo na Líbia é uma intervenção na qual se apoia uma parte contra a outra. Isto só tem um nome: guerra.

É verdade, o presidente Barack Obama é mais multilateral do que George W. Bush. Contudo, o problema não é quantos são os que decidem, mas o que decidem. Também é verdade que a resolução do Conselho de Segurança excluiu a previsão de Fidel Castro, no dia 21 de fevereiro, de que a Otan iria ocupar a Líbia.

A maioria e a não aplicação do veto foram claras. Mas o trio anglo-franco-norte-americano representa menos de 500 milhões de pessoas, enquanto os cinco países que se abstiveram – Brasil, Rússia, China, Índia e Alemanha – constituem quase a metade da humanidade.

Quem ganhar o apoio dos países islâmicos dirigirá o mundo, e a Otan agora está em guerra com quatro deles.

Que os Estados Unidos queiram colocar-se em um segundo plano se explica facilmente. Está em bancarrota e quer compartilhar os custos e riscos econômicos, militares e, sobretudo políticos. Há objeções no congresso norte-americano sobre o tema e alguns temem que possa se converter em um atoleiro pior do que o do Afeganistão.

Naturalmente, ninguém deveria simplesmente olhar como um regime reprime seu próprio povo, como fez Gadafi. Qualquer outro tipo de medida deveria ter sido usada, incluindo a derrubada de aviões por meio de mísseis transportados por naves de guerra. Entretanto, como alguém disse ironicamente na Rádio Nacional Pública dos Estados Unidos, “o presidente Obama lançou mais mísseis cruiser do que todos os outros ganhadores do Prêmio Nobel da Paz juntos”, e esses projetos atingiram todo tipo de alvos existentes, estivessem voando, circulando em veículos terrestres ou caminhando.

Um precedente foi a ação da Otan contra a Sérvia, na qual usou “todos os meios necessários”, mas sem um mandato do Conselho de Segurança da ONU. Como na Líbia, na Sérvia-Kosovo o Ocidente fez sua propaganda habitual. O inimigo é reduzido a uma pessoa a se odiar, ou seja, a receita usada por Orwell em seu livro “1984”. Milosevic, Hussein, Osama bin Laden, e agora Gadafi. Esse trabalho preparatório também foi feito com relação a Fidel Castro e Hugo Chávez, até agora sem ações posteriores. É um paradoxo que o Ocidente, que produziu a ideia de um contrato social que o povo possa reconsiderar – Rousseau contra Hobbes – se concentre em apenas uma pessoa e tão pouco nas pessoas.

No entanto, as metas na Sérvia eram claras: bombardear empresas estatais, não as privatizadas, abrir o caminho para as corporações transnacionais para o controle dos recursos naturais, conseguir instalar essa enorme base militar chamada Camp Bondsteel e apoiar um chamado Exército de Libertação (UCK) que ostenta antecedentes recordes em matéria de horrores. As armas usadas contra a Sérvia incluíram bombas de fragmentação e urânio empobrecido, que é radioativo e causa câncer nesta geração e nas que virão.

Não sabemos se isto é aplicável à guerra contra a Líbia. Não fica claro quem são os rebeldes, embora não haja dúvidas de que estão fortemente, e com razão, contrários à ditadura de Gadafi. Mas, o que querem? Presumivelmente, permitirão os investimentos estrangeiros diretos no petróleo e a instalação de uma ou duas bases militares, tanto por gratidão quanto para solidificar a vitória. E os Estados Unidos terão, então, o que buscaram durante longo tempo: uma base da Otan na África.

Na Líbia, talvez existam milhões que não gostam de Gadafi, mas os que lhe são favoráveis gostam muito de algumas de suas realizações. O Ocidente pode muito bem se converter em vítima de sua própria doutrina de “um país, uma pessoa” e cometer um mais duradouro e trágico crime contra a humanidade. Envolverde/IPS

* Johan Galtung é professor de Estudos sobre a Paz e reitor da Transcend, uma organização que promove a paz, o desenvolvimento e o meio ambiente.