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Direitos Humanos tem momento decisivo

Foto: Catraca Livre (catracalivre.folha.uol.com.br/)

Porto Alegre, Brasil, 28/2/2013 – Março será um mês importante para definir o futuro do apedrejado Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O dia 22 de março é a data limite para que os membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) apresentem propostas de reforma deste sistema de justiça internacional, que nasceu em 1948 para promover e proteger garantias fundamentais estabelecidas na Declaração Americana sobre Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal de Direitos Humanos.

O sistema é formado por dois órgãos autônomos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com sede em Washington, e o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos, com sede em San José, na Costa Rica. Sua principal função é fiscalizar o cumprimento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada em 1969.

O governo do Equador deu o pontapé inicial, e também lidera um esforço para criar um sistema de justiça paralelo, no contexto da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), que, no entanto, até agora não se concretizou. Por sua vez, a Venezuela denunciou a Convenção Americana em setembro de 2012.

O debate foi lançado em junho de 2011 com a criação de um grupo de trabalho dentro da OEA. Desde então, são realizados fóruns, audiências públicas e consultas eletrônicas para estudar diferentes recomendações. Destacam-se as propostas de restringir o poder da Comissão de adotar medidas cautelares, suprimir a análise de países com violações maciças e limitar as faculdades de relatorias especiais, como a de Liberdade de Expressão.

A Comissão tem faculdades políticas – realizar visitas específicas e emitir recomendações e informes – e quase judiciais: receber denúncias de particulares ou organizações, determinar se são admissíveis, solicitar aos Estados medidas cautelares e levar casos ao Tribunal. Este tem funções contenciosas, consultivas e de adoção de medidas provisórias. Suas sentenças são definitivas e inapeláveis.

As relações do Brasil com a Comissão ficaram abaladas quando esta solicitou, em abril de 2011, que o país “suspendesse imediatamente” de forma cautelar a licença para o projeto hidrelétrico de Belo Monte, no Rio Xingu, na Amazônia, para proteger a saúde das comunidades indígenas afetadas pela obra.

Brasília não acatou. Mas a posição brasileira foi mal interpretada, segundo a Divisão de Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores, que designou um de seus representantes para responder à IPS, solicitando que não o identificasse. O Brasil já estava cumprindo as exigências da Comissão a partir de demandas de órgãos de fiscalização nacionais e seu apoio à reforma não foi consequência dessa sentença, afirmou a fonte diplomática.

O certo é que Brasília retirou seu embaixador junto à OEA e seu candidato a integrar o órgão colegiado que dirige a Comissão. Em março terminará o prazo para que os países apresentem candidatos e, segundo a Divisão de Recursos Humanos da chancelaria, até meados deste mês não havia uma decisão a respeito.

“As propostas de reformas são apresentadas quando a Comissão e o Tribunal cumprem as obrigações acordadas na Convenção”, criticou o ativista Jair Krischke, presidente do não governamental Movimento de Justiça e Direitos Humanos, com sede em Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, que ganhou notoriedade por revelar o Plano Condor, uma coordenação repressiva dos regimes militares da América do Sul.

Para Krischke, a posição brasileira não se deve apenas ao caso de Belo Monte, mas a uma sentença do Tribunal que ordenou, em 2010, a entrega dos restos mortais dos desaparecidos na repressão militar à Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1975, e a reparar os danos às famílias das vítimas. O governo afirma que já fez reparações, mas não dos danos morais, como manda o Tribunal, assegurou Krischke à IPS.

“No Uruguai (diante de outra condenação similar), o governo realizou uma cerimônia no parlamento, com a presença do Presidente da República e pediu perdão por seus desaparecidos. No Brasil, nem mesmo foi publicada a sentença do Tribunal”, acrescentou o ativista.

A insatisfação dos governos com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos é incompreensível, observou a professora-associada Deisy de Freitas Lima Ventura, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). “Quando um Estado soberano faz parte de um sistema regional é justamente para ouvir críticas e receber recomendações ou uma condenação”, afirmou à IPS. Os governos de Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela estão nesta campanha por que este sistema de justiça tocou em aspectos cruciais das agendas de seus presidentes, acrescentou a professora.

“Quando o Sistema Interamericano habilita um político opositor na Venezuela a ser candidato ou quando pede respeito aos direitos de jornalistas de um órgão de comunicação em conflito com o mandatário do Equador, mexe em assuntos pessoais dos presidentes. Esse foi o caso de Belo Monte e a presidente Dilma Rousseff”, argumentou Ventura.

A postura do Equador tem a ver com decisões incômodas sobre questões domésticas, afirmou o professor de direitos humanos Mario Melo, da Universidade Andina Simón Bolívar e advogado no caso do povo sarayaku versus o Estado equatoriano no Tribunal. Em junho do ano passado, esta corte concluiu que o governo equatoriano havia violado direitos dessa comunidade indígena ao não consultá-la sobre a instalação de uma empresa petroleira em suas terras no começo da década passada. “É um assunto delicado para o governo por sua política de ampliação da fronteira petroleira em territórios indígenas”, opinou.

Nos fatos, a Comissão é, desde as décadas de 1970 e 1980, um espaço para vítimas de atropelos que esgotam os recursos internos sem obter justiça ou que enfrentam demoras injustificadas dos sistemas judiciais nacionais.

Camila Asano, coordenadora de política externa da Conectas Direitos Humanos, uma organização não governamental com status consultivo junto à ONU, recordou que assuntos cruciais no Brasil, como trabalho escravo e violência machista, tiveram que passar pela Comissão para se tornarem visíveis. Mas os processos são lentos, e esta é uma das críticas que se faz à justiça interamericana. Às vezes não há tempo para esperar uma decisão, por isso são necessárias as medidas cautelares, pontuou Asano.

O Equador quer liquidar esse mandato da Comissão, deixando-a apenas para o Tribunal. O Brasil – para o qual a Comissão emitiu reiteradas medidas cautelares para proteger ativistas, jornalistas, trabalhadores rurais e presos – reconhece esta competência, mas sugeriu mudanças que tornariam a tramitação mais rígida e complicada.

A proposta brasileira, segundo o representante da chancelaria, é que a Comissão fundamente melhor suas decisões sobre casos como Belo Monte e que dê maior ênfase na promoção de direitos. “Que não se trate apenas de julgar e punir violações, mas de incentivar as medidas que evitem sua repetição”, ressaltou a fonte.

Outros aspectos questionados pelos Estados são mais preocupantes. Por exemplo, se a Comissão tem competência para produzir informes anuais sobre países que mereçam atenção especial. Delegados de nações alegam que esses documentos não deveriam apontar um ou outro Estado, mas todos os membros do sistema.

O fato de Estados Unidos e Canadá não terem ratificado a Convenção Americana, mas ajudarem a financiar a Relatoria Especial sobre Liberdade de Expressão, gera descontentamento. Uma das propostas é que as doações não possam ser destinadas a uma ou outra relatoria.

O Brasil pede uma gestão mais transparente e que os recursos sejam distribuídos pelo Fundo Ordinário da OEA, sem excluir a possibilidade de doações de fundações internacionais e bancos de fomento. “Boa parte das melhorias propostas não se aplicam por falta de recursos”, apontou Asano. Sua organização entende que, como potência econômica, o Brasil deveria dar o exemplo e aumentar sua contribuição.

Segundo a fonte diplomática, o Brasil fez sua última contribuição em 2008. “Em 2010, a gestão de recursos saiu do Itamaraty para o Ministério do Planejamento. Naquele ano, solicitamos contribuição de US$ 800 mil, mas não foi aceito por falta de orçamento”, informou. “Nos últimos anos, apertamos o cinto em matéria de gastos e não houve aportes. Não digo que tenha sido por razões políticas, talvez não houvesse recursos”, justificou.

O professor Melo não crê que ao final das discussões sejam aprovadas reformas mais radicais. “Todos sabem que enfraquecer o Sistema Interamericano incentivaria o uso autoritário do poder”, enfatizou. Para Ventura, “renunciar a esta dimensão de controle, como fez a Venezuela, seria uma hipoteca para as gerações futuras. É óbvio que um sistema regional de proteção não resolve os problemas, mas em muitos casos permite lançar uma luz sobre as violações”. Envolverde/IPS