Mentir para pedir esmola deve dar cadeia?

Se passar por deficiente físico por uma esmola é crime?

Por que miseráveis que se fazem passar, por exemplo, por deficientes para pedir esmola causam tanto melindre nas “pessoas de bem”?

No dia 11 de janeiro, uma mulher chamada Juliete da Silva Ferreira, negra, 23 anos de idade – ainda que aparente ter pelo menos dez anos mais –, mãe de três filhos, moradora do Morro de São Benedito, em Vitória, Espírito Santo, foi presa após uma denúncia anônima. Seu crime? Juliete se passava por deficiente física para comover motoristas parados em sinais de trânsito da capital capixaba a fim de potencializar os seus ganhos com esmolas. Trata-se de uma prática que costuma fazer muita gente ficar tomada da mais profunda indignação, a um nível que poucas vezes se vê entre quem está dentro do carro quando confrontados com a miséria alheia.

A polícia, usando o linguajar próprio de quando policiais se referem ao histórico de crimes praticados por assaltantes, traficantes ou que tais, informou que a mulher “agia” há pelo menos cinco anos em diferentes pontos da capital e já estava sendo procurada pela prática de estelionato.

“Ela usa da boa-fé das pessoas para tirar dinheiro delas”, disse o delegado que botou Juliete atrás das grades, sem notar que sua justificativa para prendê-la e seu melindre ante a estratégia de sobrevivência da falsa deficiente poderia servir para enquadrar um sem número de, digamos, “homens de bem” e condenar suas estratégias de mercado, como por exemplo os donos de bancos especializados em oferecer empréstimos consignados a aposentados desavisados, dizendo vender crédito “simples, prático, rápido e sem complicação”, quando na verdade cobram juros dignos de uma espécie de agiotagem avalizada pelo Banco Central.

Presa, de dentro da viatura, por trás das grades do camburão, a reação de Juliete às perguntas da imprensa foi prometer se comportar. “Não faço mais isso”, disse, garantindo que não vai voltar a repetir a malfadada artimanha.

“A esperteza é a coragem do pobre”

Mas, como nos Autos de Fé, a confissão e o manifesto de arrependimento não renderão a liberdade à herética mendiga. Não. Ré confessa, as autoridades procederão com o piedoso ato de enviá-la ao inferno da penitenciária.

Por falar em inferno, quem não se lembra de João Grilo, o anti-herói de Auto da Compadecida, peça teatral de Ariano Suassuna adaptada com enorme sucesso para a TV – foi a microssérie de maior sucesso da Rede Globo até hoje – e para o cinema com a direção do premiado Guel Arraes.

Quem não se lembra dele, o miserável João Grilo, que se passa por padre, apresenta-se como cangaceiro e até se finge de morto para garantir a sobrevivência, significasse a sobrevivência um prato de comida ou escapar de um paredão de execução montado por um fora da lei metido a Lampião.

João Grilo, interpretado na TV e no cinema pelo ator Matheus Nachtergaele, engana um coronel, um comerciante, dois sacerdotes católicos e um bandido barra pesada. Quando morre e é julgado no purgatório, Jesus o condena ao inferno, mas a Virgem Maria intervém após ouvir Grilo se resignar com a sentença, dizendo que era mesmo um pecador, aceitando cabisbaixo o seu destino infeliz.

“Você mentia para sobreviver João! Eles lhe exploravam! A esperteza é a coragem do pobre. A esperteza era a única arma de que você dispunha contra os maus patrões. Não se entregue João”, diz a Compadecida, que acaba conseguindo junto a Jesus uma segunda chance na Terra para o miserável mentiroso, que teve a própria vida como pena.

E isso para não falar em Macunaíma. Na literatura, o pobre que se vira como pode é best-seller, vira clássico, vira filme, é quase cult. Na vida real, ninguém acha graça, é “estelionato” ou “falsidade ideológica”, e dá cadeia.

* Publicado originalmente no site Opinião e Notícia.