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No mundo do faz de conta, “só dez por cento é mentira”

O evento reuniu filmes, vivências lúdicas, rodas de conversa e oficinas
O evento reuniu filmes, vivências lúdicas, rodas de conversa e oficinas

Por Maria Helena Masquetti * 

Se assistir a um filme humano, criativo e transformador é bom, o que dizer de um banho de cinema com tal qualidade por três dias seguidos? Ao findar a 2ª mostra internacional da Ciranda de Filmes no dia 24 de maio, voltei com a sensação de ter estado numa outra dimensão, porém muito familiar. A Ciranda estreou com o longa-metragem Território do Brincar, de Renata Meirelles e David Reeks, e, a partir daí, foi uma folia impagável sair de uma sala e entrar em outra sempre com a mesma sensação de perda na hora de optar por este ou aquele, entre os mais de 50 filmes de várias partes do mundo.

Dramas reais, ficção, contemplação, experiências inspiradoras e resgates surpreendentes, numa soma de olhares profundos sobre a infância, faziam fluir no rosto das plateias uma inquietação provocada, quem sabe, pela criança que se espreguiçava dentro cada um. Serenando os corações, o grande Manoel de Barros compareceu à mostra na forma do documentário de Pedro Cezar: “Só dez por cento é mentira”, título inspirado na afirmação do poeta: “Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”.

A frase estampada na tela me transportou para um momento na infância onde, na companhia de outras crianças, tal como mostraram alguns filmes, preparava também um bolo de “chocolate” feito com terra úmida e coberto com balas brancas e vermelhas devidamente representadas pelas pétalas de adálias roubadas do jardim de casa.

Uma vizinha afetuosa colocou a cabeça por sobre o muro e, compadecendo-se da “precariedade” de nosso bolo, nos entregou a surpresa: um bolo de chocolate de verdade coberto com balinhas de verdade. Daquele momento até hoje, restara somente a lembrança do bolo de terra esfacelado a um canto enquanto, num clima murcho de entusiasmo, mastigávamos de verdade uma verdade que não era a nossa.

Revisitar aquele momento me permitiu recordar porque o bolo de dona Violeta (seu nome rimava assim) não havia sido devorado com o nível de empolgação que ela certamente esperava. Todavia, ela pode ser desculpada pela distância em que provavelmente se encontrava da criança que um dia fora, e por não ter tido intenção premeditada de lucrar  com a substituição de nosso desejo genuíno pelo seu do modo como o marketing vem fazendo com tantas milhões de crianças.

Para honrar a infância, é fundamental distinguirmos a verdade das criações infantis da mentira de tanta parafernália criada a partir da ótica adulta e da ganância comercial. Precisamos possibilitar que as crianças experimentem como válidos seus próprios desejos e opiniões sobre o mundo independente dos desejos externos.

Ninguém entende tanto sobre o brincar como as crianças e elas dependem de nossa ajuda apenas na medida de suas demandas por cuidados, equipamentos e espaços que lhes permitam materializar suas criações tão reais quanto únicas. É imprescindível, portanto, mantê-las a salvo das mensagens sedutoras que visam implantar nelas a vida falsa do consumismo, sugando-lhes, em troca, a seiva do prazer de ser e inventar. De toda a alegria e felicidade que o marketing promete às crianças, nem dez por cento é verdade.

Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.