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Novo rosto e nova vida para vítimas do cancro oral na Etiópia

Yenenesh Yigsaw (primeira à direita) se recupera de sua última cirurgia reconstrutiva. Foto: Nick Ashdown/IPS
Yenenesh Yigsaw (primeira à direita) se recupera de sua última cirurgia reconstrutiva. Foto: Nick Ashdown/IPS

Adis Abeba, Etiópia, 30/1/2014 – É difícil dizer se Gelegay Tsegaye está sorrindo, já que uma prega de pele cobre metade de sua boca. Mas seus olhos brilham quando fala e sua voz ganha um tom de esperança. Está sentado em uma sala especial do Hospital Coreano de Adis Abeba, o centro de saúde mais moderno da Etiópia. A delicadeza de Gelegay é notável considerando o que sofre.

Este agricultor de 34 anos, originário de uma aldeia da região etíope de Gojam, é um sobrevivente do cancro oral, ou noma, rara infecção que destroi as membranas mucosas da boca e outros tecidos. Quando tinha dois anos de idade, Gelegay começou a apresentar manchas negras no nariz, que rapidamente se espalharam para a boca. Recebeu tratamento rudimentar e a doença destruiu parte de seu rosto.

O noma ocorre apenas entre meninos e meninas (com maior incidência entre um e quatro anos de idade) das regiões mais pobres do mundo, como as zonas rurais da África subsaariana e Índia. A Organização Mundial da Saúde estima que há 140 mil novos casos por ano. A causa principal da doença é a pobreza.

Segundo a Iniciativa Mundial Contra a Fome e pela Segurança Alimentar, do governo dos Estados Unidos, “a Etiópia é um dos países mais pobres do mundo, com renda de US$ 471 por habitante”. Esta organização afirma que 38,7% dos pouco mais de 80 milhões de habitantes deste país do Chifre da África vivem abaixo da linha de pobreza. O noma só é registrado nas aldeias mais pobres, onde a atenção médica inexiste. Não há dados oficiais sobre a prevalência da doença na Etiópia.

A infecção pode acontecer quando uma criança pobre sofre um corte na bochecha. O ferimento infecciona e o noma se propaga rapidamente pelo rosto, causando a morte de 85% dos enfermos nos primeiros dez dias da doença. Os que sobrevivem ficam com partes do rosto mutiladas, e o sofrimento passa a ser psicológico. Desde que se curou, Gelegay não tem mais dor no rosto, mas ficou desfigurado e isso o incomoda diante de outras pessoas. “Costumava ter muita vergonha quando interagia com os demais. Simplesmente me marginalizavam”, contou à IPS.

Na Etiópia os sobreviventes do noma não vão à escola. Normalmente são isolados por sua comunidade, por seus familiares ou por eles mesmos, pois não se sentem cômodos em sociedade. Yenenesh Yigsaw é uma jovem de 19 anos da região de Tigray, e teve noma quando tinha dois anos. Ela não era muito consciente do estado de seu rosto até que foi para a escola. E então deixou de ir. “Foi minha decisão. Odiava ser diferente dos meus amigos. Sempre tinha que andar escondendo o rosto, e era muito embaraçoso”, contou à IPS.

O médico Gersan Abera nunca havia visto um caso de noma antes. “Em geral os pacientes simplesmente ficam em suas casas. Nem mesmo buscam tratamento tradicional”, explicou à IPS, acrescentando que muitas pessoas interpretavam a doença como um castigo de Deus. Há poucos anos, Gelegay e Yenenesh souberam da existência da Facing Africa, organização beneficente com sede na Grã-Bretanha que oferece cirurgias reconstrutivas gratuitas aos sobreviventes de noma na Etiópia.

A iniciativa foi criada há 15 anos pelo britânico Chris Lawrence, após ter experimentado o que descreve como “raiva pura” contra esse mal. “Raiva pelo fato de uma doença com esta, causada pela desnutrição e pobreza extrema, existir no século 21”, contou à IPS. “O noma não tem motivo de existir. Se for detectada em suas fases iniciais pode ser curada muito facilmente”, com simples antibióticos que detêm a infecção, afirmou. “Entretanto, os pacientes morrem ou, quando os médicos os veem, já perderam metade do rosto”, lamentou.

A maioria dos moradores das zonas rurais da Etiópia não tem acesso a antibióticos, e não há iniciativas específicas do governo para enfrentar a doença. A infecção pode ser combatida com a modernização completa dos serviços de saúde, bem como melhorando o saneamento e a nutrição, que só o governo pode fazer. Entretanto, especialistas afirmam que a atenção médica melhorou significativamente desde que o governo lançou o Programa de Extensão da Saúde em 2004-2005.

“Este programa aumentou maciçamente o acesso aos serviços de saúde mais básicos e foi de grande ajuda para a redução das taxas de mortalidade entre menores de cinco anos”, ressaltou à IPS o diretor da organização Care Etiopia, Garth Van’t Hul. Gelegay já se submeteu a três cirurgias para reparar o dano no nariz e na boca, enquanto Yenenesh fez duas operações na bochecha. Ambos afirmam que suas vidas melhoraram desde então. Yenenesh tem mais amigos e as pessoas a tratam melhor. Gelegay afirmou que isso o ajudou a conhecer outros pacientes de noma. “No começo estava muito surpreso, porque pensei que era o único”, contou. Envolverde/IPS