Barcelona, Espanha, julho/2012 – Pelo menos três gerações na Espanha não se recordam, em suas vidas ou na memória familiar, de uma crise tão densa, cruel e por todos os ângulos incompreensível.
Francisco Silvela, pensador do crepúsculo do Século 19 e presidente do governo espanhol, disse em agosto de 1898, após o desastre colonial, que a Espanha ficara “sem pulso”. De certa maneira, esta sensação é palpável hoje, sobretudo no governo, apesar dos cortes. Esta percepção é corrigida somente pelos protestos populares. O restante está aniquilado pela catástrofe financeira.
Embora existam semelhanças com outros países europeus, na Espanha a origem da enfermidade atual pode ser rastreada na evolução da sociedade nas décadas posteriores à Guerra Civil, com uma base detectável em todo o Século 20.
Desde a entrada, em 1986, na Comunidade Europeia, nunca em toda a história da Espanha e seus antecedentes, desde o Império Romano, tantos viveram tão bem durante tanto tempo.
Simultaneamente, recordava-se, de forma direta ou por referências, que os pais e avós haviam sofrido penúrias e que milhares de conterrâneos dos avós tiveram que emigrar para outras terras, de onde somente uma minoria regressou endinheirada.
Na Espanha, até muito pouco tempo atrás, a imensa maioria vivia de forma precária, comia deficientemente, morava amontoada, se vestia com farrapos, era analfabeta e se movimentava em carros puxados por mulas, depois em trens fumarentos.
Tudo começou a mudar no começo da década de 1960, graças à confluência de três fatores, de origem contrastante: o plano de estabilização pelo qual o Estado se despojou da autarquia econômica, a chegada de investimentos e do turismo, e a emigração do excesso de força de trabalho, com o consequente envio de dinheiro.
Esse cenário transformou-se, não de repente, já que no começo se detectava uma mudança notável com o crescimento da classe média e as melhorias nas condições da classe trabalhadora, sobretudo a urbana.
Primeiro foram os pequenos automóveis, depois o uso universal de geladeiras e aparelhos domésticos de limpeza e para cozinha. Mais tarde, deixando de viver com pais e avós, as novas gerações de espanhóis se dedicaram com paixão a ter uma casa própria, superando em poucas décadas nesse status alemães e europeus do norte, que nunca abandonaram a tônica do aluguel. Já não bastava uma moradia urbana, mas a escalada do status incluía desfrutar de uma segunda residência.
É compreensível que essa espetacular melhora no nível de vida fosse considerada um justificado prêmio pelo esforço, tanto dos que integravam os escalões trabalhistas quanto de seus pais. Em grande parte, foi conseguida pelo múltiplo emprego, jornada estendida e, depois, pela incorporação da mulher no mundo profissional em proporções inconcebíveis no passado.
Em resumo: ninguém deu nada de presente aos espanhóis. Se tiveram acesso a empregos públicos, o fizeram em um belo sistema de concursos que, ao menos na época, estava moderadamente impregnado de corrupção, de cor política.
O Estado de Bem-Estar, que se posicionou na França quando amadurecia o Século 20, de suas remotas origens europeias (não de inspiração comunista, mas do chanceler alemão Otto Bismarck), foi reforçado pelo franquismo como um mecanismo a mais para garantir a dócil adesão da sofrida população, que nos primeiros anos havia se submetido ao regime por medo da guerra e da repressão.
De ter um setor primário de proporções descomunais, baseado na agricultura e pecuária, a Espanha se converteu em um modesto poder industrial e, depois, predominantemente baseado nos serviços. A democracia, renascida em 1976 após o desaparecimento de Francisco Franco, reforçou esse modo de vida.
A entrada na União Europeia foi um sucesso, tanto na dimensão política quanto na econômica, superando a média do produto interno bruto comunitário.
A Espanha não era diferente, como dizia o lema franquista. Era a nona potência econômica do planeta, o terceiro destino turístico, o maior doador de ajuda ao desenvolvimento na América Latina, onde seus investimentos haviam superado os de seus sócios europeus e inclusive os dos Estados Unidos. Continuavam surgindo artistas de fama mundial e seus esportistas conquistavam troféus e medalhas de alcance planetário. O espanhol era a “primeira segunda língua do mundo”.
Nesse contexto, ao ter ao alcance o crédito fácil proporcionado pelo mercado único e pela implantação do euro, a febre consumista foi irresistível. A economia, baseada predominantemente na construção (o “tijolo”), estourou como uma bolha de sabão colorida.
A queda foi fulminante. O resgate (eufemismo da intervenção) será um remédio amargo, difícil de digerir. Como depois de 1898, se deverá recuperar o pulso, ainda que pela contundência do protesto. Envolverde/IPS
* Joaquín Roy é catedrático Jean Monnet e diretor do Centro da União Europeia da Universidade de Miami ([email protected]).