Parece que os chineses decidiram levar a sério a epidemia de aids. Já não era sem tempo, durante muitos anos eles simplesmente ignoraram o que se passava. Até o fim de 2010, as autoridades governamentais haviam registrado 379 mil casos de infecção pelo HIV no país. O número de doentes com aids já instalada teria atingido 138 mil; e o de mortes pela doença, 72 mil. Esses números são questionados por epidemiologistas do Ocidente. O Center for Diseases Control, dos Estados Unidos, estima em 740 mil o verdadeiro número de infectados.
Enquanto o tratamento antiviral, conhecido popularmente como coquetel, foi instituído no Brasil a partir de 1996, na China ele só se tornou disponível em 2002. O impacto foi claro: nos sete anos que se seguiram, a mortalidade caiu 64%. Os medicamentos, no entanto, chegam tarde demais para grande número de infectados: 82,4% dos que vão a óbito não tiveram tempo de recebê-los. Segundo o Ministério da Saúde da China, perto de 25% dos HIV positivos só fazem o teste na fase de aids, quando já transmitiram o vírus para metade de seus parceiros sexuais.
Para enfrentar o desafio do diagnóstico precoce, os chineses organizaram um programa para os próximos cinco anos com ênfase na detecção de casos novos e no acesso ao tratamento antiviral. Pretendem dessa forma reduzir em 25% o número de novas infecções e em 30% a mortalidade, até 2015. A estratégia consiste em expandir os programas de detecção e o número de pacientes em tratamento. Hospitais das regiões com índices mais altos de infecção realizarão testes mandatórios nas populações de risco: homens que fazem sexo com homens, usuários de drogas injetáveis e profissionais do sexo.
Há muito os especialistas consideram que testes mandatórios, além de atentar contra direitos individuais, são contraproducentes, porque afastam do sistema de saúde aqueles com comportamento de risco.
A discriminação da sociedade chinesa contra os infectados é uma barreira nada desprezível para o êxito do programa. Um estudo internacional realizado em 2009 mostrou que cerca de um terço dos HIV positivos se queixa da quebra de confidencialidade de seus testes por parte de empregadores, familiares, amigos e profissionais de saúde. Ao menos 12% tiveram tratamento de outras doenças negado pelo fato de serem HIV positivos. Foram forçados a mudar da vizinhança 7%. Mais de um terço foi recusado em emprego ou perdeu a chance de promoção; três quartos de suas famílias se queixaram de ter sofrido discriminação.
Até 2007, o ingresso nas universidades era negado aos portadores de HIV e do vírus da hepatite B (causa de hepatite crônica em pelo menos 8% da população). Apesar da lei promulgada em 2007, que garante o direito ao trabalho, regulamentações locais negam às pessoas HIV positivas empregos em repartições públicas, hotéis, cafés, restaurantes e salões de beleza, entre outros. Enquanto os chineses que desconfiam ter adquirido o HIV fogem do teste para evitar a discriminação, o vírus se dissemina com liberdade. Uma pesquisa conduzida em 61 cidades demonstrou que a prevalência média de homossexuais masculinos infectados era de 5%; em alguns locais chegava a 18%. Na capital da província de Sichuan, a prevalência aumentou de 1%, em 2005, para 14%, este ano. Na cidade de Zigong atingiu 23%.
Outro fator adverso é o uso de drogas ilícitas. A China tem cerca de um milhão de usuários de heroína injetável, parte significativa daqueles que não se aproximam das clínicas de tratamento nem dos serviços de distribuição de seringas e agulhas, com medo de passar até três anos em centros de reabilitação que mais parecem prisões disfarçadas. Com 50 milhões de pessoas correndo risco de contrair o HIV, a China vive um momento crítico para conter a epidemia. Sem o envolvimento da sociedade civil e das autoridades no combate ao estigma da doença e à discriminação de seus portadores, o vírus continuará correndo solto pelo país.
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.