Arquivo

Quase 20 anos depois, o mundo ainda falha com Ruanda

Restos de algumas das mais de 800 mil vítimas do genocídio. Foto: Edwin Musoni/IPS
Restos de algumas das mais de 800 mil vítimas do genocídio. Foto: Edwin Musoni/IPS

 

Kigali, Ruanda, 29/11/2013 – “Há um ditado no qual todos os ruandeses acreditam: ‘se esquecer, não será capaz de perdoar, mas se lembrar terá presente quem te prejudicou e poderá perdoar e seguir adiante’”, disse Honore Gatera à IPS enquanto caminha pelo Centro Comemorativo de Kigali, capital de Ruanda. Esse museu foi criado em 2004, dez anos depois do genocídio.

Estima-se que 800 mil tutsis e hutus moderados perderam suas vidas no massacre ocorrido em 1994, depois que foi derrubado o avião que transportava o então presidente Juvenal Habyarimana, de Ruanda, e seu colega de Burundi, Cyprien Ntaryamira. Naquele ano, a comunidade internacional foi incapaz de frear o genocídio. Quase 20 anos depois, continua falhando, segundo muitos habitantes desse país africano, ao não garantir que seja feita justiça com os responsáveis.

Angela Mbabaz é uma tutsi de 27 anos. Passou toda sua infância em Uganda com seus dois irmãos e uma irmã mais nova. Agora tem uma filha da mesma idade que tinha quando sua mãe foi assassinada junto a outros parentes dentro de um recinto da Igreja Católica nos arredores de Kigali. “Me inteirei da morte da minha mãe quando tinha sete anos. Não gostaria que minha filha soubesse que os autores intelectuais do genocídio não estão todos presos, por isso nada lhe contei”, disse à IPS.

Os tribunais comunitários em Ruanda, conhecidos como “gacaca”, foram criados em 2001 para fazer justiça a vítimas como Mbabaz. Na língua local kinyarwanda, gacaca significa sentar-se e discutir um assunto. Os gacacas deixaram de funcionar no ano passado. Organizações de direitos humanos criticaram o processo comunitário porque não seguia os padrões legais internacionais. Segundo dados do governo, 65% dos dois milhões de suspeitos de genocídio foram considerados culpados no rápido processo legal habilitado em Ruanda.

Quase não há oposição local aos gacacas, nem mesmo de especialistas legais. Sabine Uwase, assessora jurídica da Avega Agahoso, associação de mulheres que ficaram viúvas por causa do genocídio, considera que esses tribunais comunitários são efetivos. “Esse país precisava de uma justiça rápida, pois muitas vítimas queriam avançar para a reconciliação nacional”, afirmou. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) “demora muito, acrescentou.

O TPIR foi criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1994, com sede em Arusha, na Tanzânia, para julgar os principais responsáveis. Contudo, deixará de funcionar em 2014, uma vez concluídas as apelações pendentes. O porta-voz do tribunal, Rolland Amoussouga, acredita que as críticas ao TPIR são infundadas. “Desde que começou, em 2003, o TPIR apresentou acusações contra 93 pessoas, prendeu 83 e emitiu 75 sentenças, com 12 absolvições e 63 condenações à prisão”, detalhou à IPS.

O tribunal assentou jurisprudência no direito internacional, ao ter conduzido o primeiro processo pelo crime de genocídio. No ano passado, a ONU adotou um Mecanismo Residual Internacional dos Tribunais Penais para concluir os casos que ficarem pendentes uma vez o TPIR conclua seu mandato. “É um sentimento normal de sobreviventes e vítimas do genocídio criticar o TPIR de uma forma ou outra. Não se pode esperar uma justiça perfeita”, pontuou Amoussouga

Dez acusados do genocídio continuam foragidos. Naphtal Ahishakiye é secretário-executivo da Ibuka (“recorda”, em kinyarwanda), organização nacional que representa sobreviventes do genocídio e o grupo da sociedade civil mais poderoso de Ruanda. “Esses responsáveis devem ser detidos e levados à justiça aqui em Ruanda, não ao TPIR nem em Haia”, afirmou. “Os gacacas representavam justiça participativa. Todos em Ruanda vinham se inteirar de como foi planejado e executado o genocídio”, ressaltou.

Mbabaz quer que Ruanda supere o genocídio, como ela fez. Ela acredita que a comunidade internacional deterá os foragidos e garantirá que sejam julgados. “Já se passaram 20 anos e as coisas mudaram. Já não falamos de hutus e tutsis, somos todos ruandeses. Quero que minha filha entenda o que aconteceu e estou disposta a perdoar o que fizeram com a minha família”, afirmou.

O dia de recordação nacional do genocídio é 4 de abril. No próximo ano completarão duas décadas do massacre. Os esforços de reconciliação se concentram em diluir as fidelidades tribais e substituí-las por um sentimento de identidade ruandesa moderna. Gatera concluiu sua visita ao Centro Comemorativo e expressou seu desejo de pôr fim a esse terrível capítulo da história de seu país. “Passou muito tempo. O TPIR concluirá seu mandato no ano que vem e ainda há muitos casos abertos e muitos outros responsáveis fugindo pelo mundo”, afirmou.

“Uma vez capturados, devem ser trazidos para Ruanda, pois já demonstramos à comunidade internacional que podemos tratar todos de forma justa”, ressaltou Gatera. No entanto, mesmo se esses fugitivos forem presos e levados a um tribunal, não há garantias de que o processo siga os padrões internacionais. De todo modo, muitos ruandeses estão convencidos de que eles podem demonstrar à comunidade internacional que não precisam de ajuda externa para fazer justiça. Envolverde/IPS