Lançada no final de março pelo Ministério da Saúde brasileiro, a Rede Cegonha desencadeou uma discussão sobre concepções e prioridades de saúde da mulher, na qual feministas e ativistas dos direitos sexuais e reprodutivos questionam o foco da iniciativa do governo.
A Rede Cegonha prevê uma série de medidas para a saúde materno-infantil, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), destinadas ao atendimento e acompanhamento de mulheres do momento em que a gravidez é confirmada até os dois primeiros anos da criança. Segundo o Ministério da Saúde, o objetivo principal é reduzir a taxa de mortalidade materna no país, que ainda é alta – para cada cem mil nascidos vivos há 69 óbitos de mulheres –, concedendo atendimento integral à mulher e ao filho. Para tanto, o orçamento da Rede Cegonha será de R$ 9,4 bilhões até 2014.
Inicialmente, a iniciativa privilegiará as regiões da Amazônia Legal e o Nordeste, que apresentam os maiores índices de mortalidade materna e infantil no país, e as regiões metropolitanas. Além do acompanhamento médico, que envolverá seis consultas durante o pré-natal, exames clínicos, laboratoriais, de diagnóstico de HIV e sífilis, as gestantes adotarão um posto de saúde como referência e saberão, com antecedência, onde será o parto. As mulheres terão ainda um auxílio – vale-táxi e vale-transporte – para se deslocarem aos postos de referência. Haverá também a qualificação de profissionais de saúde para atender mulher e filho, assim como a construção das Casas da Gestante e do Bebê, que vão acolher os casos de gestação de risco, e dos Centros de Parto Normal, destinados à humanização do nascimento. Está previsto o acompanhamento integral da saúde da criança, promovendo o aleitamento materno e o atendimento médico especializado quando necessário.
A médica e integrante da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e do Conselho Consultivo da Rede de Saúde das Mulheres Latino-Americanas e do Caribe (RSMLAC), Fátima Oliveira, destaca que o foco na mortalidade materna já estava previsto no Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal de 2005. “Foi uma apropriação do que já existia e estava indo relativamente bem. A parte nova é a de assistência social, muito boa enquanto ação puramente de assistência social. Será bom para as mulheres, não tenho dúvida. Mas a concepção onde tais ações estão embutidas – saúde materno-infantil, um conceito antigo, conservador e do agrado absoluto da Santa Sé – é equivocada. Ao retomar tal conceito, o Ministério da Saúde adoça a boca do Vaticano”, critica Fátima Oliveira, referindo-se à conhecida influência que a hierarquia católica exerce no país.
Telia Negrão, secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde, lembra que a organização tinha sido chamada, em fevereiro, para discutir a Rede Cegonha. De acordo com ela, havia uma preocupação de ter um viés materno-infantil. No início de março, a Rede Feminista emitiu uma nota pública demonstrando tal preocupação. “Estávamos apreensivas e atentas, pois temíamos que a iniciativa do Ministério da Saúde significasse um desmanche da política de saúde integral, prevista na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, diante de uma ação específica voltada apenas para um dos eventos da trajetória de vida das mulheres”, explica Telia Negrão.
Segundo a secretária-executiva da Rede Feminista, uma semana antes do lançamento houve uma oficina de trabalho, organizada pelo Ministério. “Não havia ainda uma definição sobre o status da Rede Cegonha, se seria um programa, uma política ou uma estratégia. Expressamos nossa preocupação com o que a Rede não continha, embora uma política materno-infantil não possa ser desmerecida. São políticas necessárias, pois focam as mulheres em determinado estágio da vida. Portanto, a Rede Cegonha pode ser vista como uma excelente estratégia para a redução da mortalidade. Além disso, ela avança no sentido de ampliar o acesso à contracepção, de prever a compra de insumos de planejamento reprodutivo e de estimular a assistência a mulheres vítimas de violência sexual ”, ressalta Telia Negrão. A mesma ideia é compartilhada por Fátima Oliveira, para quem a Rede Cegonha “no fundamental, é uma ação de assistência social coadjuvante e otimizadora do Pacto de 2005”.
A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, de 2004, serve de base tanto para as críticas quanto para a defesa da Rede Cegonha. Esther Vilela, obstetra e coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, defende a iniciativa do governo como uma ação pontual e específica. “O fato de a redução da mortalidade materna ser um objeto da Política Nacional não significa que conseguimos dar conta de tudo. Significa que temos que propor ações para diminuir esse índice, que ainda é elevado no Brasil”, justifica a médica. “A Rede Cegonha é uma ação para combater e reduzir a mortalidade materna, ela é uma medida de enfrentamento. Não é um programa, é uma estratégia do governo que sinaliza o compromisso de combate a essas mortes evitáveis”, completa.
A história da legislação e das políticas públicas brasileiras voltadas para a saúde da mulher tem envolvido governos e militantes feministas há tempos. Em 1975, foi criado o Programa Materno-Infantil, que consistia em uma orientação técnico-normativa às Secretarias Estaduais de Saúde do país destinada ao acompanhamento do pré-natal, ao controle do puerpério, ao estímulo do aleitamento, à distribuição de fórmulas de alimentação infantil e à imunização e acompanhamento das crianças. Tinha como público-alvo as mulheres de 15 a 49 anos.
Nos anos 1980, a ideia de integralidade foi ganhando espaço na agenda de discussões entre militantes e poder público. Em 1985, o Ministério da Saúde lançou o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). É considerado um marco histórico, pois é o primeiro programa de saúde nacional a ter como meta a integralidade no atendimento. Em outras palavras, o programa inaugura, no Brasil, a assistência em todas as fases da vida, buscando assegurar bem-estar e cidadania à mulher em toda a sua diversidade (étnica, regional, sexual, de idade, etc.).
A integralidade da saúde da mulher é um dos pressupostos que fundamentam as principais críticas à Rede Cegonha. A médica Fátima Oliveira afirma que a iniciativa padece de alguns defeitos de origem que se configuram como ameaças ao debate republicano sobre os direitos sexuais e reprodutivos. “O primeiro nó górdio foi colocar nos pés da cegonha o Pacto Nacional pela Redução da Morte Materna e Neonatal, uma ação específica da Política Nacional de 2004, e apresentá-lo à sociedade, o combate à mortalidade materna e neonatal, como algo novíssimo e original. A Rede Cegonha não pode ser o todo e nem o centro da atenção à mulher”.
Telia Negrão lembra que o Pacto de 2005 foi mais uma estratégia política, de mobilização, do que uma estratégia técnica. “O Pacto tinha um braço mais amplo, que focava inclusive a questão do abortamento inseguro, um gravíssimo problema no Brasil. Este enfoque não está presente na Rede Cegonha”, afirma.
A questão do aborto é um dos aspectos principais da discussão. Segundo Esther Vilela, do Ministério da Saúde, a Rede Cegonha não é destinada a englobar todas as questões envolvidas na saúde da mulher. “Ela envolve a atenção básica e o planejamento reprodutivo. O governo vai continuar a dar força e apoio para outros aspectos que envolvem a saúde da mulher. Vamos analisar o acompanhamento no pré-natal: nem todas as mulheres atendidas chegarão ao parto. Queremos atender integralmente e, por isso, vamos qualificar outras abordagens, focando na conversa com a gestante, em atividades educativas. Não ficaremos apenas medindo a barriga e fazendo exames. Isto é atenção integral e pressupõe o atendimento às mulheres que não chegam ao parto”, assinala.
Abortamento inseguro
Fátima Oliveira afirma que se o argumento da morte materna é o ponto central da Rede Cegonha, a atenção ao abortamento inseguro deveria estar presente. “A morte decorrente de um aborto inseguro também é conceitualmente considerada morte materna. A pergunta é: como será enfrentada tal morte? Ou ela é satanizada a tal ponto que nem merece atenção?”.
Esther Vilela enfatiza que, ao contrário das críticas, a Rede Cegonha amplia os direitos reprodutivos e sexuais, garantindo a dignidade e a vida das mulheres e dos bebês. “Nossa estratégia é qualificar a atenção à saúde da mulher. Em relação ao abortamento inseguro, gostaria de fazer uma observação: a mulher procura o serviço médico no transcurso do abortamento. Nossa obrigação é atendê-la rapidamente, de forma qualificada e evitando a violência institucionalizada. É um princípio ético para nós. Inclusive, lembro que o Ministério da Saúde está instituindo o acolhimento nas maternidades com prioridade de emergência. Uma mulher com hemorragia, por exemplo, terá preferência no atendimento”, explica Esther Vilela.
No Brasil, as discussões sobre interrupção da gravidez são marcadas por embates e pressões ideológicas provenientes, sobretudo, de setores religiosos. Na campanha presidencial de 2010, a então candidata Dilma Rousseff, atualmente presidente da República, recuou publicamente de sua defesa pela descriminalização do aborto. Naquele período, a temática foi fartamente explorada sob um viés moralista, ignorando-se os aspectos de saúde pública.
O período eleitoral demonstrou o poder de influência que os setores conservadores da sociedade brasileira detêm. Fátima Oliveira acredita que há correlação entre o enfoque materno-infantil priorizado pelo governo, no início da gestão, com a conjuntura político-eleitoral do ano passado. “O Vaticano desacelera o sarrafo, mas exige contrapartida”, critica.
A Pastoral da Criança, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), esteve no lançamento da Rede Cegonha. A presença da entidade, afirma Fátima Oliveira, representa “uma deferência à retomada da visão da saúde materno-infantil, que tem o apoio irrestrito do Vaticano em uma visão de santificação da maternidade e de satanização das mulheres”.
Para a secretária-executiva da Rede Feminista, Telia Negrão, a Rede Cegonha precisa ser mais discutida com a sociedade civil. “Ainda falta ampliar o escopo das ações para os casos de mulheres que não querem ser mães. Em janeiro, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, assegurou a criação de políticas de saúde integrais para as mulheres. Vamos cobrar, e esta cobrança passa pelo fortalecimento da Área Técnica da Saúde da Mulher, que não pode ter uma visão exclusivamente materno-infantil. Apoiamos a Rede Cegonha, mas permanecemos alertas para que o que ela não prevê seja contemplado em outras políticas públicas”, afirma Telia Negrão.
No meio de abril, lembra Fátima Oliveira, o Ministério da Saúde organizou, em conjunto com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), o Simpósio Internacional de Redes de Atenção à Saúde Materno-Infantil, no qual apresentou a Rede Cegonha como uma iniciativa de aprimoramento “da atenção à saúde materno-infantil, uma estratégia de mudança de paradigma da atenção obstétrica e infantil, por meio da implementação de uma rede de cuidados que assegure às mulheres o direito à gravidez, parto e puerpério seguros e humanizados, e o direito ao planejamento reprodutivo; e às crianças o direito ao nascimento seguro e humanizado, crescimento e desenvolvimento saudáveis”.
No final de abril, o Ministério da Saúde foi representado pela coordenadora da Área Técnica da Mulher, Esther Vilela, no 4º Encontro Nacional dos Governantes e Legisladores pela Vida, em Brasília. No evento, a Rede Cegonha foi apresentada. Telia Negrão avalia que há um desejo de setores conservadores de se apropriarem da iniciativa como algo de sua lavra. “Uma representante do governo não deveria dialogar com setores contrários aos Direitos Humanos a não ser com o intuito de afirmar que os direitos sexuais e reprodutivos são paradigmas assumidos pelo Ministério da Saúde. O encontro fere o caráter laico das políticas públicas e torcemos para que não seja uma aproximação do governo com setores que são contra o caráter republicano do Brasil”, critica a secretária executiva da Rede Feminista.
Esther Vilela defende o envolvimento do Ministério da Saúde no Encontro. “O evento envolveu questões que são responsabilidade do governo. Apresentamos a Rede Cegonha, porque, como governo, temos que dialogar com todos os setores que desejam conhecer a estratégia. O diálogo é parte da estratégia para a melhoria da qualidade de vida das mulheres e crianças. Não penso que tenhamos ferido princípios da Rede Cegonha. A Rede Feminista pode ficar tranquila que não vamos ferir princípios de direitos sexuais e reprodutivos e ficaremos atentos e mobilizados para todas as questões relativas à saúde da mulher”, afirma a coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher.
Fátima Oliveira afirma que só as deusas sabem o rumo que as discussões sobre saúde reprodutiva e sexual tomarão no governo de Dilma Rousseff. “Mas o feminismo é quem faz e define suas agendas. Não conheço feminista que veio ao mundo a passeio. O feminismo brasileiro já pautou e continuará pautando o governo”, afirma, acrescentando que defende as ações em saúde e em assistência social de proteção à maternidade e à infância como direitos da mulher e da criança não como piedade, esmola, desde que tais ações estejam inseridas na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher.
Para Telia Negrão, a demanda pela integralidade da saúde da mulher não é uma questão das feministas, mas uma necessidade inserida no contexto dos Direitos Humanos. “Mulheres brasileiras morrem por causas evitáveis, como o aborto e, infelizmente, a nova estratégia do governo não engloba o abortamento inseguro. No Brasil, vivemos uma condição de precariedade associada a graves injustiças sociais que penalizam as mulheres mais pobres, que não têm condição de interromper a gravidez com a segurança e os meios eficazes acessíveis às mulheres de classe média. Por isto, estamos propondo à Área Técnica da Mulher que revise a Política de 2004 para que todos os pontos sejam cumpridos”, conclui.
* Publicado originalmente so site do CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.