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Refugiados vivem um pesadelo no norte do Paquistão

Médicos examinam crianças refugiadas da agência do Waziristão do Norte em uma clínica gratuita de Bannu, distrito da província de Jyber Pajtunjwa. Foto: Ashfaq Yusufzai/IPS
Médicos examinam crianças refugiadas da agência do Waziristão do Norte em uma clínica gratuita de Bannu, distrito da província de Jyber Pajtunjwa. Foto: Ashfaq Yusufzai/IPS

 

Peshawar, Paquistão, 29/7/2014 – Algumas pessoas fogem a pé, outras sobem em caminhões com seus pertences, alimentos e animais. Muitas se separam de suas famílias ou ficam exaustas no caminho. Não sabem quando voltarão a comer nem como poderão cuidar dos filhos. No vasto acampamento para refugiados internos na província paquistanesa de Jyber Pajtunjwa, muitos civis que fugiram da ofensiva que o exército do Paquistão realiza contra o movimento extremista Talibã, na região do Waziristão, caminham em um estado de confusão.

Os médicos do acampamento disseram que quase todas as 870 mil pessoas refugiadas estão profundamente traumatizadas por uma década de guerra no norte, onde ficaram em meio ao fogo cruzado entre as forças estatais e os insurgentes que chegaram do Afeganistão em 2001 às Áreas Tribais Administradas Federalmente (Fata). Agora que o governo lançou uma operação aérea no Waziristão do Norte, com 11.595 quilômetros quadrados, disposto a acabar com o Talibã, a população civil novamente sofre a carga mais pesada do conflito.

As pessoas não têm outra opção a não ser abandonar seus lares ancestrais e se refugiar na vizinha província de Jyber Pajtunjwa, onde a água potável, os alimentos e os suprimentos médicos são administrados para renderem o máximo possível. Começaram a chegar refugiados a esta província desde o começo da operação militar de 15 de junho, e este mês já são quase um milhão, segundo fontes oficiais.

A ajuda humanitária recebida consta de rações de alimentos e suprimentos médicos para os feridos e desidratados pelo abrasador calor de 45 graus centígrados. “Os refugiados estão ficando em casas alugadas ou com familiares, mas carecem de água, saneamento e comida, e ficam doentes”, disse à IPS o psiquiatra Mian Iftijar Hussain. “Mas o principal problema é o de ordem psicológica, que não se pode ver”, ressaltou.

Sentada diante do Hospital Psiquiátrico Iftijar, nesta capital de Jyber Pajtunjwa, Zarsheda Bibi, de 50 anos, contou à IPS que toda sua família teve de fugir do Waziristão deixando tudo para trás. O centro médico fica a cerca de 400 quilômetros do maior acampamento de refugiados de Bannu, distrito desta província. Mas pior do que a perda de sua casa e de seus pertences, destacou Bibi, foi a morte de seu neto de um ano, que não suportou a longa travessia. “Não pode dormir bem porque todas as noites sonha com seu neto”, explicou Iftijar, que atende Bibi por estresse pós-traumático.

Javid Jan, da Autoridade Nacional de Gestão de Desastres, afirmou que esse é um dos grandes problemas dos refugiados. No acampamento de Bannu foi encontrada uma mulher cujo marido morreu em um bombardeio em Miramshah, no Waziristão do norte. “Ela está totalmente desorientada e extremamente preocupada com o futuro de seus três filhos e uma filha”, contou. As pessoas sem raízes têm grandes probabilidades de terem problemas no curto e longo prazos devido ao prolongado estresse, ao medo e à ansiedade.

Outro problema é a despersonalização, considerada pelo Manual de Diagnóstico e Estatísticas de Transtornos Mentais, da Associação Norte-Americana de Psiquiatria, como uma desordem dissociativa causada por uma grande desorientação, bem como uma alteração na percepção do mundo exterior a ponto de parecer irreal ou como um sonho. Jan também disse que mulheres, meninas e meninos, que representam 73% dos refugiados, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), têm grandes probabilidades de sofrerem estresse pós-traumático, bem como ansiedade, pânico e depressão.

O psicólogo Muhammad Junaid afirmou que as pessoas também sofrem de baixa autoestima, pois estão obrigadas a viver em barracas de campanha e choças em lamentáveis condições de higiene. As mães sofrem especialmente por sua incapacidade de cuidar de sua família, e não são raras as fobias permanentes, destacou.

O pessoal médico está especialmente preocupado pela situação dos menores. “Da infância à adolescência, as crianças passam por diferentes fases importantes de desenvolvimento físico e mental”, explicou Junaid. “Nessa transição se forma sua identidade, crescem fisicamente e criam laços familiares, bem como vínculos com sua comunidade e a sociedade em seu conjunto”, acrescentou.

Os pais também estão preocupados pelas consequências do deslocamento na educação dos filhos. “Dois dos meus filhos são muito bons alunos”, contou à IPS o comerciante Muhammad Arif, procedente de Mirali, uma divisão administrativa do Waziristão do Norte. “Iam bem na aula, mas agora não tem escola e temo que não avancem”, acrescentou.

Ainda que regressem ao Waziristão, o futuro é desolador. A operação do exército destruiu casas, prédios e lojas. Será preciso reconstruir tudo antes de as pessoas poderem voltar a uma vida normal, lamentou o comerciante. Após quase um mês no acampamento, Sadiq, o filho de dez anos de Arif, disse à IPS, chorando, que as crianças como ele não podem “dormir, brincar, nem estudar”.

Para os especialistas que trabalham na região há tempos, a situação alcançou um ponto de inflexão em uma crise que se gesta desde que o exército começou a combater a insurgência nas escarpadas montanhas do norte do Paquistão, há mais de 12 anos.

“Cerca de 50% da população das Fata sofrem problemas psicológicos devido à insurgência e às consequentes operações militares”, apontou à IPS Muhammad Wajid, psiquiatra do hospital de clínicas de Peshawar. “Examinamos cerca de 300 mil pacientes na ala psiquiátrica do hospital desta província em 2013, e 200 mil deles procediam das Fata. Isso inclui 145 mil mulheres e 55 mil menores de idade”, acrescentou.

Desde 2005, quase 2,1 milhões de residentes das Fata se refugiaram em Jyber Pajtunjwa, pontuou Javid, o que significou um grande desafio para o governo, que tenta manter o equilíbrio entre as necessidades das populações de refugiados e as desta província que vivem na pobreza. A última onda de refugiados só agravou os problemas do governo. Muitos funcionários temem que a situação esteja no limite, em especial neste mês sagrado muçulmano do Ramadã, quando há uma grande necessidade de condições sanitárias adequadas e de alimentos para romper o jejum diário. Envolverde/IPS