
Miami, Estados Unidos, abril/2013 – Sua morte no mesmo dia é mera coincidência, mas simbólica e representativa. Sarita e Maggie revelam o cenário de seus respectivos países, velhas nações europeias e antigos impérios que resistiram a se desvanecer, aferrados a alguns traços de identidade que somente as duas damas desaparecidas (e seus numerosos admiradores) compreendiam.
Mas a Espanha de “la violetera” e a Grã-Bretanha da “dama de ferro”, que ambas teimosamente tentaram manter inalteradas, foram (e são) antiéticas e de diversa sorte.
A beleza em tecnicolor que a cantora natural da Mancha transmitiu com sua voz inconfundível contrasta com a face séria e distante da ex-primeira-ministra britânica (1925-2013). Mas nas duas se nota traços intra-históricos ainda perceptíveis.
A Espanha, que era o contexto da época gloriosa de Sara Montiel (1928-2013), embora resita a desaparecer, parece ter sido superada pelo desenvolvimento, pela industrialização e depois pela bolha imobiliária que levou à crise e ao desprestígio.
O país que as canções maquiavam era então um cenário mais próximo, por mais imaginado que fosse. O lançamento hollywoodiano, que a levou a alternar com Gray Cooper e Burt Lancaster, era o triunfo que apagava o desencanto de “Bem-vindo Mr. Marshall”, em um Estado ditatorial sustentado por Washington.
Mas os espectadores arrebatados por seus filmes aceitavam de bom grado as melodias que os convidavam a contemplar uma paisagem pobre, sem alternativas a não ser o silêncio, a resignação ou a emigração.
A Grã-Bretanha, na qual se lançou com fúria Margaret Thatcher (1979-1990), era vista por seus círculos conservadores como uma traição aos valores eternos da Inglaterra imperial, que deixara paulatinamente que em muitos de seus antigos territórios coloniais o Sol se pusesse.
Tratava-se ainda de paliar esse lento desmoronamento com a admirável ficção jurídica da Comunidade de Nações, que em seu ponto alto se colocava a monarca ainda atual.
Eram os tempos felizes em que os escândalos da casa de Windsor ficavam reduzidos à memória de Eduardo VIII, que renunciou insolitamente ao trono em 1936 “pelo amor de uma mulher” (com ar de bolero). Depois viriam as aventuras de Charles e a tragédia de Diana.
Os tempos de Sara, lidos hoje, sobretudo com uma perspectiva reacionária, são lembrados com nostalgia. Nada se sabia (ou não se publicava devido a uma imprensa amordaçada) da corrupção barata e de pouca monta que dominava a sobrevivência em um país que apenas se recuperara da cruel Guerra Civil (1936-1939) e do isolamento após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Sarita vendia violetas enquanto presos republicanos terminavam a construção do Vale dos Caídos. A Sexta Frota chegava aos portos mediterrâneos, enquanto Rota e Torrejón eram objetivos estratégicos dos soviéticos na Guerra Fria, convertendo a Espanha em um membro forçado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), sem voz nem voto, com todas as desvantagens e nenhuma das vantagens. O franquismo recebia uma prorrogação de duas décadas.
Thatcher surgiu em meio a um país que havia adotado numerosos adereços do Estado de bem-estar, com o qual ainda tentava corrigir os históricos desequilíbrios sociais que haviam se entronizado desde a Revolução Industrial. A evidente divisão de classes era suavizada por serviços de saúde, pensões, educação, que foram a marca dos governos trabalhistas.
Ela se propôs desmantelar esse emaranhado contrário ao laissez faire com o (velho) liberalismo que havia desempoeirado do outro lado do Atlântico o sócio idôneo para dançar o tango da expressão anglo-americana: Ronald Reagan.
A Espanha de Sarita, uma vez desaparecido o franquismo, se apressou em recuperar o tempo perdido e apostou em sua reinserção no outro lado dos Pirineus. José Ortega e Gasset haviam dito que “a Espanha era o problema e a Europa a solução”.
Desde 1986, ano de ingresso na comunidade europeia, até meados da década de 1990, a Espanha se converteu na décima potência econômica do mundo e maior doadora de ajuda para o desenvolvimento na América Latina. Nunca tantos espanhóis de três gerações que viviam nesses anos tinham vivido melhor durante tanto tempo.
Thatcher havia absorvido em seu momento a entrada da Grã-Bretanha na então ainda chamada Comunidade Econômica Europeia, centrada no Mercado Comum. Vindo em seguida ao seu correligionário Edward Heath, se propôs deter a europeização além do mercado único, enterrando todo sinal de supranacionalidade, um roteiro herdado por David Cameron.
O que há apenas poucos anos era uma distante hipótese acadêmica, o “brexit”, a saída da União Europeia, agora é parte do plausível roteiro.
Hoje, a Espanha de Sarita ressuscitou com o colapso imobiliário, o desemprego generalizado, a emigração e as dúvidas sobre seu sistema político. A Grã-Bretanha imperial recebeu uma dose de vitaminas com a decisão de Maggie de contra-atacar nas Ilhas Malvinas.
Curiosamente odiada em Buenos Aires, merece um monumento diante da Torre dos Ingleses, ao lado do memorial dos caídos. Sua decisão representou o golpe de graça à decrépita ditadura do general Leopoldo Galtieri.
Entre regulamentações e protestos de indignados, aos espanhóis não resta outra coisa que não seja o consolo de um “fumando espero pelo homem que quero”. Nem socialistas nem conservadores são aceitáveis.
David Cameron se move como um Hamlet entre o ser ou não ser na Europa. Maggie teria feito de outra forma. Sarita é apenas uma memória da falácia de que qualquer tempo passado foi melhor. Aos fumantes não resta nem o consolo de fumar, expulsos dos locais públicos. Envolverde/IPS
* Joaquín Roy é catedrático Jean Monnet e diretor do Centro da União Europeia da Universidade de Miami (jroy@Miami.edu).