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O sul da Líbia espera outra primavera

O coronel Barca, comandante de Mourzouk, está em contato com federalistas do leste líbio. Foto: Maryline Dumas/IPS
O coronel Barca, comandante de Mourzouk, está em contato com federalistas do leste líbio. Foto: Maryline Dumas/IPS

 

Sebha, Líbia, 27/9/2013 – “O governo não se preocupa com a gente porque somos do sul”, disse à IPS o chefe do conselho local de Oubari, na Líbia, Mohammad Salah Lichej, expressando o abandono que sente esta parte do país. A convicção crescente de terem sido esquecidos por Trípoli está unindo os três grupos étnicos da região de Fezán, árabes, tubus e tuaregues, contra o Estado líbio.

Apesar de terem se enfrentado entre si depois da rebelião que pôs fim ao regime de Muammar Gadafi (1969-2011), estes grupos étnicos agora vivem em relativa calma e têm reclamações comuns contra o novo governo. Oubari, onde os tuaregues são maioria, fica 200 quilômetros a oeste de Sebha, capital de Fezán. Nesta localidade de 40 mil pessoas há problemas com a rede telefônica, a presença policial é escassa e as ruas estão destruídas.

“Meu primo é policial, mas só vai à delegacia para receber o salário”, disse o presidente do conselho local de Sebha, Ayoub Zaroug. Algo semelhante ocorre em Murzuq, o distrito mais ao sul de Fezán. Nesta área de maioria tubu, os serviços públicos não existem.

Ibrahim Ahmed, chefe local de Agar, pequena aldeia árabe próximo a Murzuq, contou à IPS que “ontem houve um incêndio. Não contamos com uma brigada de bombeiros, por isso apelamos para Murzuq. Mas também não têm. Não temos nada, nem exército nem uma força policial que funcione. Nossa delegacia não tem carros, nem radiocomunicador. Não há apoio de Trípoli. Na verdade, todos os serviços públicos estão ruins”.

Diante de tais carências, os líbios do sul decidiram desenvolver sistemas de organização paralelos, baseados nas tradições tribais, explicou à IPS Agila Majou, representante da tribo árabe Ouled Slimane. “Como o governo é incapaz, resolvemos os problemas entre as tribos”, afirmou.

Por exemplo, em Qahira, bairro pobre de Sebha, “um grupo de 60 pessoas, entre revolucionários e residentes voluntários”, cuidam da segurança, disse o chefe tubu da área, Adam Ahmed. “Patrulham a área e usam suas próprias armas. Quando há um problema, os líderes tribais se reúnem”, explicou à IPS. Ahmed garante que a maioria dos criminosos foge e se esconde em prédios em construção abandonados por uma empresa indiana que se retirou do país antes da revolução. “Sabemos onde estão, mas ninguém os prende”, lamentou.

Youssef Souri, do conselho local de Murzuq, acrescentou que, “mesmo quando são presos… pedimos três vezes ao governo que reinstale o tribunal (dessa localidade), mas não tivemos resposta. Quando há um roubo, se a pessoa é detida, passa apenas alguns dias na prisão. Depois sua família se apresenta como garantia e paga uma fiança, que é devolvida depois do julgamento”. Em casos de assassinato, o procedimento é diferente. “Envia-se os (supostos) homicidas para Sebha, onde os juízes adiam constantemente os processos por medo de represália”, explicou à IPS.

Essa autonomia, de fato, alimenta a ideia de que uma federação poderia ser a melhor forma de governo para o país. Essa possibilidade, que está ganhando protagonismo na região de Cirenaica, no leste, recebe mais e mais apoio no sul. “Sou federalista porque quero que Fezán se beneficie de sua riqueza, que atualmente vai toda para Trípoli. Mas quero uma federação real, não três países diferentes, como estão pedindo no leste”, disse Ibrahim Youssef, diretor de uma organização em Muzurq.

O coronel Wardacoo Barca, encarregado da segurança em Murzuq, admite ter “se reunido com federalistas do leste”. Ele disse à IPS que “vamos nos reunir também com os tuaregues para redigir uma proposta ao governo. Queremos que o dinheiro do petróleo de Fezán volte para nós, e também queremos melhor representação no governo e nos corpos diplomáticos. Se Trípoli não responder, apoiaremos a formação de uma federação”.

Segundo Barca, “estamos convencidos de que, se exigirmos a criação de um Estado federal, todos nossos vizinhos africanos nos apoiarão. O que realmente desejamos é um governo que esteja presente em todas as partes e alguma forma de reconhecimento”. Para os tuaregues, o reconhecimento também implica a nacionalidade. Jeli Ali, membro da Comissão de Reconciliação de Oubari, garante que 14 mil famílias tuaregues não puderam apresentar provas do lugar de nascimento de seus ancestrais e, portanto, carecem do documento de identidade necessário para se matricular na universidade ou trabalhar no serviço público.

“Somos vítimas do racismo”, disse o tuaregue Ali. “Quem são os habitantes originais da Líbia? Não são os árabes, mas os tuaregues, os tubus e os bereberes (amazighs). Nós temos a terra como prova de nossa nacionalidade, eles (os árabes) têm papéis”, disse à IPS. “Não deixaremos que isto continue assim. A história mostra que no final se obtém os direitos, pela força se necessário”, ressaltou. Envolverde/IPS