A primeira vez que o poço de Bom Lugar jorrou petróleo foi em 1968, quando a Petrobras perfurou as rochas do subsolo a dois quilômetros e meio de profundidade. Foram quase três décadas de exploração até a estatal suspender os trabalhos em 1997, ano em que deixou de ter o monopólio nacional para pesquisa, exploração, refino e distribuição petrolífera. Bom Lugar só ressuscitou dez anos mais tarde, ao entrar para uma nova categoria de negócios, a dos campos marginais, controlados por produtores independentes de médio e pequeno porte.
Arrematado pela Alvorada Petróleo S.A., conglomerado formado por quatro empresas, entre as quais a construtora Empa, do grupo português Teixeira Duarte, o campo Bom Lugar foi a leilão na 7ª rodada de licitações, a primeira de campos marginais, promovida em 2005 pela Agência Nacional do Petróleo (ANP).
Com sede em Belo Horizonte e centro operacional em Salvador, a petroleira retomou as atividades de Bom Lugar em 2007 e hoje produz 500 barris por dia. Em média, o volume de todos os operadores marginais representa menos de 1% da produção da Petrobras – exatos 0,35% –, segundo a Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Petróleo e Gás (Abpip). A Alvorada investiu R$ 4 milhões e criou 35 empregos diretos. Um de seus trabalhadores é o engenheiro mecânico Kleber Dias Almeida, que nunca tinha visto a cor do petróleo antes de ser contratado pela petroleira. “Precisamos de mais leilões de campos marginais, precisamos buscar mais petróleo. Não podemos desperdiçar o que aprendemos e conquistamos até agora”, diz Almeida.
O cenário dos pequenos campos reativados na Bahia e em Sergipe lembra os Estados Unidos do fim do Século 19, quando a febre do petróleo moveu o sonho por fortuna de milhares de aventureiros na mais impressionante saga do capitalismo contemporâneo. Fortunas jorraram dos poços escavados e desapareceram nas flutuações de preços de um único dia. O ouro negro inaugura o tempo dos magnatas, personificado em John D. Rockefeller, o monopolista que criou os padrões da indústria. Controlar o petróleo passou a ser determinante para a vitória ou a derrota em uma guerra – ou simplesmente para se começar uma batalha. Após a Segunda Guerra Mundial, a geopolítica mundial moldou-se ao sabor das disputas pelos poços, vide os mais recentes conflitos no Norte da África e em parte do Oriente Médio. Até quando seremos dependentes dos hidrocarbonetos?
O planeta discute, e não é de hoje, o fim da Idade do Petróleo. Como define o ex-ministro e colunista de Carta Capital, Delfim Netto, a Idade da Pedra não acabou por falta de pedras, mas pelo fato de outras tecnologias mais eficientes terem sido inventadas. Não há dúvidas de que o estilo de vida e o modo de produção impulsionados pelo uso do petróleo são os principais responsáveis pela degradação do planeta. O que não se sabe, porém, é como e em que ritmo faremos a transição para uma nova etapa. E se seremos capazes de realizá-la a tempo de reverter ou ao menos estancar os problemas que ameaçam a nossa própria existência.
O consumo mundial não dá sinal de trégua: cresceu quase 30% entre 1990 e 2008, de 67 milhões para 86 milhões de barris por dia. No mesmo período, a demanda de petróleo na Índia mais do que dobrou e a da China, triplicou. De acordo com o diretor-executivo da Agência Internacional de Energia (AIE), Nobuo Tanaka, em 2010 o mundo consumiu 2,7 milhões de barris a mais que no ano anterior. O ritmo de crescimento deve se repetir em 2011.
Ao mesmo tempo, a escalada nas cotações internacionais tende a aumentar a pressão sobre os custos dos alimentos, dos produtos de limpeza doméstica, de higiene pessoal e energia para indústrias. No setor petroquímico, por exemplo, o petróleo precisa ser transformado em nafta, que vira eteno e depois polietileno, até poder ser transformado em embalagens plásticas flexíveis. Um aumento elevado no preço do óleo reflete-se no custo da matéria-prima e dos insumos, o que significa um impacto no valor de embalagens plásticas, fertilizantes, combustível para colheita e para transporte da safra agrícola.
No Século 21, com o aumento da temperatura global, de dois graus em relação aos níveis pré-industriais, o tema das mudanças climáticas pressiona os esforços mundiais para reduzir a queima de combustíveis. Mas o “homem hidrocarboneto”, para usar uma expressão do professor Daniel Yergin, autor do livro Petróleo: Uma História de Ganância, Dinheiro e Poder (Paz e Terra, R$ 89, 1.096 págs.), estaria preparado para abrir mão de seu conforto?
Não será uma transição fácil. Em 1850, nos primórdios da exploração do petróleo, mais de dois terços da economia dos Estados Unidos dependiam da energia gerada pelos músculos de animais domesticados. Em 1960, a força dos músculos, inclusive dos humanos, desapareceu do gráfico da economia norte-americana (e mundial). O tanque de um carro médio, com 40 litros de gasolina, contém energia equivalente a quatro anos de trabalho manual. Para obter a energia necessária na vida de um americano médio, os mais vorazes consumidores da Terra, com sua internet, tevê a cabo e carro na garagem, seriam precisos 50 ciclistas pedalando dia e noite, sem parar, no jardim de cada casa.
Mas um bom sinal vem da China, que em 2010 superou a Dinamarca e a Alemanha, além da Espanha e dos Estados Unidos, e se tornou a maior fabricante de turbinas eólicas do mundo. Nos últimos dois anos, o país ultrapassou o Ocidente e se destacou igualmente como a maior fabricante de paineis solares do mundo. Para dar conta de seu planejado crescimento econômico, os chineses trabalham com igual intensidade para construir reatores nucleares e centrais elétricas mais eficientes movidas a carvão. Seus esforços para dominar tecnologias renováveis apontam para a perspectiva de que algum dia seja possível explorar sol e vento com produtos made in China. O país estabeleceu como meta que até 2020 as energias solar, eólica e de biomassa representarão 8% de sua capacidade de geração de eletricidade. Até lá, o carvão continuará a alimentar dois terços do consumo chinês.
Nossa sociedade ainda dependerá dos combustíveis fósseis por muitos anos. Existem no mundo cerca de 800 milhões de automóveis, quase um para cada grupo de dez habitantes do planeta. Nos Estados Unidos, de acordo com o físico José Goldemberg, professor da Universidade de São Paulo (USP) e uma das maiores autoridades nacionais em energia, existem tantos carros quanto pessoas, incluindo as crianças. No Brasil, diz Goldemberg, em 2014, cada família de quatro pessoas terá um automóvel. Como suprir uma demanda tão grandiosa por combustível? Com a China e a Índia na mesma tendência, explica o professor, dentro de 20 anos haverá dois bilhões de automóveis em circulação no mundo.
Imaginemos um dia hipotético: amanhã, quando o Egito suspende o trânsito de petroleiros pelo Canal de Suez e há escassez de óleo e gás no mundo. Milagrosamente, imaginemos que a Venezuela, a Rússia e o Brasil também ficarão sem condições de abastecer os mercados. Assim que terminassem os estoques e as reservas estratégicas, de três meses, como seria o mundo sem petróleo? Há poucas respostas para essa questão. Em seu mais novo relatório, datado de dezembro de 2010, a AIE registra ao menos uma obviedade: “A era do petróleo barato acabou”.
Segundo o economista Ladislaw Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), o Brasil tem a chave para alcançar um novo patamar. Sua matriz energética é “invejável”, segundo Dowbor, por ser baseada em hidreletricidade “numa época em que a mudança do paradigma energético-produtivo está se tornando peça fundamental da construção do futuro”. Para ele, a disponibilidade de mais reservas de petróleo abre novas perspetivas. “Se o país conseguir evitar a tentação de mais um ciclo agroexportador, ou o uso apressado dos novos recursos, e souber proteger o seu meio ambiente e aprofundar a construção de um novo equilíbrio social, a continuação do círculo virtuoso tem boas perspectivas.” Dowbor assinala ainda que o futuro dependerá de como o Brasil administrará essa equação.
A expansão da biomassa depende não apenas da redução de custos e da mitigação de impactos ambientais. Outras fontes de energia, como a geotérmica ou a nuclear, têm potencial de expansão. Na realidade, as fontes renováveis de energia são difusas e não há um único produto capaz de substituir o petróleo à altura de seu custo e de seu poder energético. Um quilograma de petróleo contém, aproximadamente, três vezes mais energia que um quilograma de madeira, diz Dowbor. Segundo ele, a transição envolverá mudanças tanto no lado da demanda, como no da infraestrutura dependente de energia.
Os desafios maiores, portanto, em termos de energia, estão mais no plano da demanda e do uso racional do que no lado da oferta. As tecnologias de construção hoje disponíveis, afirma o acadêmico, podem reduzir o consumo de energia, em particular no uso do ar condicionado e do chuveiro elétrico, com construções mais inteligentes, células fotovoltaicas e aquecedores solares, entre outros.
Para Goldemberg, falta ao Brasil a atenção ao uso racional de energia. “A eficiência energética, menina dos olhos de todos os países desenvolvidos, aparece como uma correção de segunda ordem no planejamento energético brasileiro”, afirma. Como o petróleo sempre foi uma fonte eficiente, abundante e barata, diz Goldemberg, não houve estímulo para seu uso racional. “Hoje não há mais relação entre consumo de energia elétrica e a produção de riqueza porque já se utilizam equipamentos com cada vez melhor desempenho, e menos consumo de energia.” A complementação ao sistema pode vir de várias fontes, do etanol à cogeração a partir da queima de bagaço de cana. Goldemberg explica que a União Europeia estaria consumindo 50% mais energia se não tivessem sido adotadas sérias medidas de conservação energética, entre elas o uso de geladeiras mais eficientes, automóveis com maior quilometragem por litro de combustível e outras medidas relativamente simples. O Brasil, asseguram os pesquisadores, pode viver com metade da energia que consome hoje.
Há outros desafios. Como se moverão os automóveis, os aviões e os navios? Como iremos produzir aspirinas e brinquedos? Nas próximas páginas, Carta Verde discutirá quais as tecnologias mais avançadas para substituir o petróleo em diversas áreas. E quais as chances de elas virem, em breve, a ser usadas em larga escala. A bem do nosso próprio futuro.
* De Bom Lugar (BA).
** A matéria é parte integrante do suplemento Carta Verde, produzido pela Envolverde em parceria com a revista Carta Capital.
*** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.