por Renata G. Ferreira, Especial para Envolverde –
A corrida para o ouro ainda não terminou. Até que sejam tiradas da terra as últimas pepitas, a floresta será atacada, e com ela, os povos indígenas que hoje são os maiores responsáveis pela proteção da mata. No dia 11 de maio de 2021 aconteceram as primeiras mortes da invasão à terra Yanomamis de um conflito que segue quase um mês sem uma ação efetiva do Governo.
Enquanto isso, nos jornais vemos uma tímida abordagem sobre o tema, e os indígenas se articulam para conseguirem voz e apoio nas mídias sociais. A hashtag #alertayanomami ainda tem pouco alcance e parece circular nos mesmos pequenos grupos ativistas, sendo ignorado pela grande massa. Mas como começou a história dessa invasão, e o que ela tem a ver com você?
Quando tudo começou
Quero iniciar com a entrevista exclusiva de Mariana Pelizer, ecofeminista e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP: “Nós não queremos lidar com as feridas históricas do nosso país. Na Alemanha você tem referência ao nazismo e a morte de tanta gente em todos os lugares que você vai. Não esquecer o que aconteceu, para que não se repita. No Brasil nós temos o apagamento das nossas feridas. É como se nós não tivéssemos condições de lidar com tudo o que aconteceu. Como não elaboramos a dor, acabamos repetindo”.
Trago, portanto, o resumo a seguir sobre as invasões ao longo do tempo, com o objetivo de olharmos para a situação atual dos Yanomamis não apenas como algo pontual, mas sim como mais um capítulo de uma longa história que existe desde o ano 1500.
O garimpo no Brasil já acontece desde a invasão dos portugueses. São Paulo foi a primeira região a ser garimpada, existem indícios que até hoje em regiões da Grande São Paulo podem existir pepitas enterradas. A atividade foi evoluindo conforme os recursos naturais iam acabando nas regiões exploradas, e novas estradas facilitavam a exploração nas regiões mais interioranas do Brasil.
Não é por um acaso que a região Amazônica foi preservada por mais tempo. Distante da orla marítima e de difícil acesso, a área começou a ser explorada com mais intensidade em 1637 para exploração da castanha e do cacau, e em 1870 para a extração da borracha. Mas foi durante a Ditadura que a Amazônia começou a ganhar visibilidade. Em 1972 foi inaugurada a Transamazônica, estrada que facilitou o acesso à região, expondo indígenas, e toda a fauna e flora dali.
Durante todo esse processo os povos que viviam nessa área, assim como no restante do Brasil, foram violentados e dizimados, seja pelos embates físicos, doenças trazidas pelos brancos, exploração e escravização de mão-de-obra, e também dos corpos de mulheres e crianças. Apenas em 1992 os Yanomamis, um dos maiores povos indígenas isolados na América do Sul, conquistaram a demarcação dos seus territórios, segurando o ritmo da exploração legal, mas ainda assim, enfrentando, sem praticamente nenhum respaldo do governo, as ações ilegais.
Em 2010 vemos um crescente aumento da exploração e desmatamento, mesmo em territórios demarcados. Em 2015 por razões orçamentárias as BAPEs (Bases de Proteção Etnoambientais), que serviam de postos de fiscalização e apoio para operações, foram desativadas. Finalmente em 2020 conforme o relatório Cicatrizes na Floresta, tivemos 500 hectares de área degradada, tanto por cortes no orçamento, quanto pelo incentivo público ao garimpo.
Desde o início de maio de 2021, os Yanomamis estão sofrendo frequentes ataques de garimpeiros na região, enfrentando troca de tiros, ameaças diretas à vida de lideranças indígenas, e incêndios nas comunidades. No dia 26 de maio garimpeiros e políticos organizaram um protesto contra a intervenção da Polícia Federal e do Ibama na Terra Indígena Mundukuru, revelando que mesmo que estejam praticando uma ação ilegal, se sentem respaldados para continuar as operações.
Tirando vidas, exterminando culturas
Os impactos dos garimpos ilegais vão além do que muitos de nós gostaríamos de imaginar. São vidas perdidas, terras tomadas, corpos violentados, mas também culturas apagadas pouco a pouco desde a colonização.
“Não é só um extermínio da vida, deste corpo. É um extermínio subjetivo, de uma cultura, dos saberes daquela população, daqueles povos.” – Mariana Pelizer
Advogada, mestra em direito e autora da obra “Guia Ecofeminista: mulheres, direito, ecologia” (Ape’Ku) Vanessa Lemgruber, em entrevista exclusiva, ressalta: “Em comunidades tradicionais o conhecimento como um saber é passado de geração em geração, às vezes pela oralidade, ou com outra metodologia que também tenha uma verificação do conhecimento, mas não nesse formado de universidade que nós temos, fechado e ocidental. Esse conhecimento vai passando de geração em geração. Quando alguém vem a falecer, é a vida da pessoa, mas também toda uma gama de conhecimento que se esvai naquela vida”.
Nós podemos sentir os impactos da perda de culturas diariamente Nas escolas brasileiras a história do Brasil é contada pela visão dos colonizadores. Neste contexto temos a banalização da exploração e escravização dos povos indígenas e africanos. Hoje muitas pessoas perderam suas raízes, importantíssimas para a formação de identidade, e perpetuação de múltiplos saberes.
Vanessa também ressalta que a perda é para toda a sociedade, que poderia se beneficiar dos conhecimentos tão profundos sobre a floresta que esses povos carregam. Ela comenta: “Todo o risco da biopirataria aumenta, e também o risco de não poder se fazer todo um relacionamento tradicional que está associado à biodiversidade.”
Mulheres, os impactos que vão além dos conflitos armados
Os garimpos ilegais modificam e ameaçam especialmente a vida de muitas mulheres, sejam aquelas que estão nas comunidades indígenas, sejam aquelas trazidas de outras regiões. Segundo a pesquisa “Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil – Pestraf” entre sete das categorias de tráfico e exploração sexual, está o agenciamento para projetos de desenvolvimento e infra-estrutura, como o garimpo.
Essas ações não estão coincidentemente ligadas. Elas revelam um comportamento de dominação sobre os corpos considerados frágeis em sociedades patriarcais. Mesmo com o avanço do feminismo, até hoje as mulheres são as mais impactadas pelas desigualdades sociais, ambientais, e violências de gênero. Quando falamos de operações ligadas à exploração de recursos, os corpos femininos são vistos como mais uma mercadoria servil para os trabalhadores.
A Vanessa Lemgruber aponta: “Existe uma causa em comum na degradação ambiental, e na tentativa de violentar os corpos das mulheres e todo corpo que vai se dissociar a um núcleo padrão e neutro, que geralmente nós associamos ao masculino egocentrado, branco, heterossexual. O ecofeminismo vai identificar essa causa em comum, e vai dizer para nós nos defendermos dessa causa, também é necessário que defenda o fim disso que perpetua essa exploração. Essa ideia de dominação e conquista do patriarcado, que se estrutura de forma una e superior das demais formas sociais.”
A importância de enxergarmos os impactos às vidas das mulheres, para além de proteger as mesmas, é expor os fatos e nos fazer refletir sobre a lógica mercantil que temos sobre o mundo. Um iminente progresso e compensação financeira, derivados de explorações, já não são cabíveis em um século onde descobrimos tecnologias regenerativas. O apoio aos Yanomamis, para quem herdou a cultura colonizadora, deve passar por uma profunda reformulação de pensamento.
Como apoiamos os garimpos diariamente
Quando falamos de garimpo e os Yanomamis, pode parecer uma realidade longe de nós. Enxergar estes ataques como algo pontual, nos afasta de entender como apoiamos quase que diariamente para que as invasões continuem acontecendo. A conscientização sobre a nossa forma de consumir é a chave para pressionarmos empresas e o poder público, que devem buscar soluções sistêmicas e sustentáveis para o desenvolvimento.
Desde os objetos de desejo como joias duráveis de ouro, até itens mais básicos, como os cristais usados para atrair boa energia, são produtos vindos do garimpo. Esses objetos que, são fruto do desejo de muitas pessoas, seja pela busca de exclusividade, seja promessa de uma vida melhor que aquele produto contêm. São exemplos da idealização que nossa sociedade construiu de que um utensílio solucionará a nossa vida.
A nossa conscientização sobre os impactos daquilo que compramos, e a escolha de mudar nossos hábitos, influenciam diretamente na pressão de mudanças de mercado. Um bom exemplo é o veganismo, que apoiado pela crescente conscientização das mudanças climáticas, angariou cada vez mais adeptos, conquistando no mercado algo que os cientistas e políticos não conseguiram realizar, um novo nicho de mercado totalmente á base de plantas.
Reconhecer os limites da natureza, adotar práticas regenerativas para o cotidiano, e entender a importância moral e ecológica de manter os povos indígenas devidamente protegidos, são passos que podemos dar individualmente para apoiar os Yanomamis e outros povos.
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