ODS16

Encarceramento ou prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças?

Pesquisa da ANDI – 

Comunicação e Direitos analisa como magistrados(as) no país veem a aplicação do direito à prisão domiciliar a mulheres gestantes ou mães cumprindo prisão preventiva.

Em fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal assegurou o direito à prisão domiciliar a gestantes e mães de crianças de até 12 anos que estivessem cumprindo prisão preventiva, por meio de Habeas Corpus Coletivo (HC 143.641/SP).

A decisão deixava claro o entendimento do STF de que a maternidade deve ser protegida – e não descartada ou interrompida, especialmente em contextos de vulnerabilidade. No entanto, isso não significa que a questão seja tratada de forma consensual no meio jurídico brasileiro.

É exatamente o que mostra a pesquisa Observa analisa: A aplicação do direito à prisão domiciliar de mulheres gestantes ou mães cumprindo prisão preventiva, realizada pela ANDI – Comunicação e Direitos e Rede Nacional Primeira Infância – RNPI, em aliança com o Instituto Alana e com o apoio da Open Society Foundations.

O trabalho analisa as variáveis que influenciam a tomada de decisão de juízes e juízas ao concederem ou não a prisão domiciliar nas circunstâncias já legalmente estabelecidas como possíveis.

Para isso, foram entrevistados(as) magistrados(as) – atuantes nas Varas de Infância e Juventude e em Varas Criminais, de Audiências de Custódia e especializadas – dos estados do Acre, Ceará e Espírito Santo.

O HC e a absoluta prioridade da criança

O Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016) estabelece estabelece princípios e diretrizes para a formulação e implementação de políticas públicas para a primeira infância, ao reconhecer a relevância dos primeiros anos de vida no processo de desenvolvimento do ser humano.

Nessa perspectiva, a lei entende que não há como garantir os direitos da criança sem avaliar as condições em que transcorrem o exercício da maternidade e a relação entre mãe e filho(a). O HC Coletivo sustenta essa compreensão, ao reconhecer a necessidade de se observar a situação de gestantes e mãe encarceradas sob o ponto de vista da absoluta prioridade da criança, conforme preconiza o artigo 227 da Constituição Federal.

Além das condições inadequadas dos presídios brasileiros para gestantes, mães e crianças, neste contexto ainda se destaca o escopo da vulnerabilidade socioeconômica.

Segundo dados relativos a 2020, da plataforma Sisdepen, 42% das mulheres encarceradas eram jovens (entre 18 e 29 anos), 67% eram negras e 34% apenas tinham o Ensino Fundamental completo.

Já segundo o Departamento Penitenciário Nacional – Divisão de Atenção às Mulheres e Grupos Específicos, em março de 2020 dentro do contingente de mulheres encarceradas no Brasil 208 mulheres eram gestantes, 44 puérperas e mais de 12 mil eram mães de crianças de até 12 anos.

Resultados da Pesquisa

Dificuldades e resistências para a concessão da prisão domiciliar

Desde a promulgação, em 2016, do Marco Legal da Primeira Infância e, posteriormente, da decisão proferida pelo STF em favor do HC Coletivo nº 143.641/SP (2018), diversas pesquisas têm constatado o não cumprimento da substituição da prisão preventiva por domiciliar no caso de mulheres grávidas e/ou mães de crianças menores de 12 anos.

O número de negativas aos pedidos de conversão demonstra que apenas as alterações normativas não se concretizam na realização dos direitos estabelecidos em prol dessas mulheres.

Segundo pesquisa realizada pelo ITTC (2019), do total de 125 gestantes ou mães acompanhadas nas audiências de custódia do Tribunal de Justiça de São Paulo entre dezembro de 2017 e maio de 2018 – cobrindo os três primeiros meses de vigência do HC –, apenas três foram beneficiadas com a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, o que representa meros 2,4% do total.

A atual pesquisa da ANDI evidencia que enquanto parte dos agentes entrevistados nega a existência de posicionamentos contrários à decisão proferida pelo STF, outros assumem a relutância na sua aplicação. As respostas revelam tanto uma crítica entre pares sobre a postura do Judiciário, quanto um espírito corporativo que defende a autonomia das magistradas e magistrados no exercício de suas funções, diante do caráter vinculativo das decisões da Suprema Corte.

Avaliação do melhor interesse da criança

Parte dos(as) juízes e juízas entrevistados(as) encontram na avaliação do melhor interesse da criança uma das dificuldades para a aplicação do HC. As declarações nesse sentido tendem a negligenciar a situação particular das mulheres presas e os efeitos da privação de liberdade das mães sobre o desenvolvimento integral das crianças (IDDD, 2019).

As respostas se baseiam na suposição de que a colocação dessas mulheres em prisão domiciliar não contribui para a proteção de suas filhas e filhos – em especial, quando inseridos em ambiente exposto a práticas criminosas e ao risco da violência advindo desse contexto.

Comprovação da maternidade ou gravidez

Seja por desconhecimento dos procedimentos definidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou por deles discordar, algumas falas de magistrados(as) revelam a desconfiança nas palavras das custodiadas e a consequente necessidade de confirmar as informações prestadas nas audiências.

Embora tal argumento desconsidere a legitimidade dos relatos apresentados por essas mulheres, ao mesmo tempo faz alusão a uma limitação concreta do Poder Judiciário no registro de dados sobre a gravidez e sobre a manutenção de filhas e filhos nos sistemas Prisional e Socioeducativo. De acordo com o último levantamento realizado pelo Infopen, apenas 12% das penitenciárias brasileiras possuem informação sobre maternidade.

Impossibilidade do uso de monitoração eletrônica

Outra dificuldade relatada pelas magistradas e magistrados diz respeito a falta de fiscalização no cumprimento da prisão domiciliar com uso de monitoramento por tornozeleira eletrônica, que segundo os argumentos apresentados, seria o meio mais eficiente para a fiscalização.

Aplicação no caso concreto

Parte das juízas e juízes entrevistados não atribui as negativas de conversão da prisão preventiva em domiciliar a resistências existentes no âmbito do Poder Judiciário. Quando muito, elas são entendidas como relacionadas ao momento inicial de aplicação da medida:

“Eu acho que toda medida, no início, tem um pouco de resistência. Igual eu te falei, eu mesmo, no início, tive um pouco de resistência de onde aplicar e onde não aplicar. Porque você  tem um juízo de valor sobre a gravidade do crime, cada juiz vai ter isso de uma forma ou de outra. Então, no início sempre tem essa resistência até chegar num ponto onde isso vai sendo definido. Como a gente já  tem um tempo, o HC já  está completando alguns anos, então essa resistência está se quebrando.”

Os discursos nesse sentido recuperam a prerrogativa de independência do Judiciário e o papel de intérprete da lei atribuído às magistradas e aos magistrados na leitura do caso concreto.

Além disso, outros relatos reconhecem a resistência da magistratura, mas a inserem em um contexto mais abrangente de crítica ao caráter vinculativo das decisões dos Tribunais Superiores em contraposição à autonomia e independência de magistradas e magistrados.

Cultura do encarceramento

Os relatos que reconhecem atitudes relutantes no conjunto da magistratura em relação à substituição de prisão preventiva por domiciliar são permeados por uma “mentalidade” punitivista e encarceradora, normalmente atribuída à figura do outro.

Chama atenção que, durante as entrevistas, essa visão mais conservadora tenha sido atribuída não somente a magistradas e magistrados, mas também aos demais atores do sistema de Justiça Criminal, aqueles que querem “mudar o mundo, resolver o problema da criminalidade com a prisão”. Dessa forma, a cultura do encarceramento surge como um problema a ser enfrentado em todas as dimensões do Sistema de Justiça.

“A magistratura, infelizmente, formada por integrantes e seus membros são muito conservadores. Nós estamos vivendo uma época muito complicada, do ponto de vista ideológico, com o endeusamento do encarceramento, com o discurso de que ‘qualquer medida que não seja prisão é uma medida que encarna a impunidade’.”

Sensação de impunidade

De forma complementar, a sensação de impunidade ressurge como outro foco de resistência. Revela-se, mais uma vez, a pressão advinda de outros setores da sociedade e da opinião pública, alimentada por um discurso midiático sensacionalista. Esse discurso reforça a necessidade de um movimento mais amplo em prol das garantias e direitos já estabelecidos em favor da criança, da maternidade e das mulheres encarceradas.

Um movimento que vá além dos quadros do Judiciário e que envolva a sociedade na quebra de paradigmas em torno da ideia de punição.

“Porque a começar pela sociedade que diz: “É, esse juiz só serve para ficar soltando bandido. […] Não basta as pessoas comentarem, vem a imprensa: ‘Juiz solta adolescente que traficava em sua casa’. O contexto é   sempre sensacionalista. É sempre dizer: ‘olha só a coisa errada que esse juiz fez’”.

Garantias legais à maternidade vulnerável

Vale sublinhar que o primeiro instrumento jurídico a estabelecer o direito à prisão domiciliar às gestantes, mães de crianças com até 12 anos ou responsáveis por pessoas com deficiência que estejam cumprindo prisão preventiva foi o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016). Na prática, desde esta época se percebe que as decisões tomadas pelo Poder Judiciário a respeito do tema estão baseadas em análises muitas vezes subjetivas.

A nova pesquisa evidencia que nem mesmo a decisão favorável do Supremo Tribunal Federal frente ao HC 143.641/SP conseguiu eliminar a resistência de parte dos(as) magistrados(as) quanto à efetiva aplicação da legislação.

Ademais, o estudo reitera que a dificuldade de efetivação dos avanços normativos em prol do exercício da maternidade fora do cárcere contribui para a manutenção de um quadro de violações de direitos. A evolução normativa que permite a substituição da prisão preventiva pela domiciliar não deve esgotar a demanda por penas alternativas à prisão, permitindo, conforme indica Mello (2014, p. 15):

“[…] que a maternidade das apenadas seja recriada num outro espaço que assegure a liberdade e não limite a capacidade da criança de descobrir o mundo e desenvolver plenamente sua capacidade”.

Faça o download da pesquisa Observa analisa: A aplicação do direito à prisão domiciliar de mulheres gestantes ou mães cumprindo prisão preventiva e veja os resultados completos

Disponível na plataforma Observa.

https://omlpi-strapi.appcivico.com/uploads/Relatorio_OSF_26jan2022.pdf

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