Estamos nos globalizando há milhares de anos

Não existe alternativa: a globalização começou com o primeiro homem. O primeiro homem (se é que alguma vez existiu “um primeiro” homem) era já a humanidade inteira. Mia Couto – Pensatempos, Textos de Opinião, Editorial Ndjira, Moçambique, 2005, p. 155.

1 Há dois milhões de anos começava um fenômeno que hoje chamamos de globalização. Por essa época, surgiram as primeiras espécies de primatas. Entre elas, figuravam aquelas que, mais tarde, há cerca de 200 mil anos, dariam origem à espécie homo. E esses antepassados tão longínquos, que surgiram na África Oriental, ocupariam todo o planeta. É a espécie com a maior capacidade de adaptação. Há seres humanos nos polos, nos desertos e naqueles espaços que mais caracterizam a humanidade: as cidades.

2 Mia Couto, o escritor e biólogo moçambicano, nos ajuda a refletir sobre essa questão:

A capacidade de produzir diversidade genética foi, sim, a característica humana que mais e melhor nos permitiu sobreviver. O sermos suficientemente diferentes entre nós mesmos (e as diferenças de uma para outra geração) ofereceu à evolução um leque de escolhas genéricas e produziu respostas adaptativas suficientemente diversas para que a vida pudesse sempre escolher. Demos esta liberdade à vida. Mia Couto – Idem, p. 155.

2 Desde sempre, os humanoides e humanos cumpriram sua sina, ou seu atavismo, ou seu instinto, ou, talvez mais apropriado, um complexo desígnio que une natureza e cultura. Por isto mesmo, em vez da expressão “natureza humana”, mais vale utilizar “condição humana”, que reúne natureza e cultura para se referir à humanidade. E a humanidade sempre caminhou no sentido da conquista de novos espaços e novos conhecimentos – vamos dizer, na direção da globalização, apesar de o termo ser muito recente para se referir a este fenômeno sempre em gestação e hoje dado à luz, consolidado.

3 Muito mais tarde, nos primórdios históricos, os grandes conquistadores e as grandes nações, quando empreendiam movimentos de expansão e dominação, estavam não só procurando obter riquezas, mas, também, ampliar sua influência cultural e política. Assim, economia, política, transporte, comunicação, ciência, tecnologia e costumes formam a base dos movimentos globalizantes.

4 São inúmeros os exemplos que temos desde o surgimento da escrita, a partir de 4.000 a.C. É interessante perceber que todos os movimentos de expansão e dominação desenvolvidos por conquistadores e/ou nações tiveram como características a presença das variáveis economia, política, cultura, comunicação, ciência e tecnologia. Aos povos conquistados, deveria ser sugerida, em alguns casos, ou imposta, em outros, também uma nova forma de vida.

5 Entre os registros mais antigos, encontramos Ciro, o grande, da Pérsia, 600-529 a.C., que dominou 5,41 milhões de quilômetros quadrados; ou Alexandre, o grande, da Macedônia, 356-323 a.C., que conquistou 5,66 milhões quilômetros quadrados, sendo responsável pela difusão do pensamento grego no Mediterrâneo e, consequentemente, para o mundo ocidental.

6 Os romanos vieram em seguida, consolidando ideias e ideais. Entre 27 a.C. e 476 d.C., mais especificamente em 117 d.C., eles dominaram 6,5 milhões de quilômetros quadrados ao redor do Mediterrâneo, chegando até a Inglaterra atual.

7 A Inglaterra, aliás, possuiu o maior império de todos os tempos, sendo responsável não só por arrebanhar riqueza, mas também pela difusão do idioma inglês no planeta. De 1583 a 1997, o império britânico exerceu profunda influência em todo o mundo sendo que, em 1920, tinha sob sua bandeira cerca de 33,7 milhões de quilômetros quadrados.

8 Antes do império britânico, há que se lembrar do fenômeno mongol, que conquistou 33 milhões de quilômetros quadrados entre 1270 e 1309, com destaque para o período de Genghis Khan (1162-1227).

9 Havia outra característica nesses antigos movimentos de globalização: a predação, a rapina, extorsão. Um triste exemplo é o do império espanhol, que prosperou sobre 20 milhões de quilômetros quadrados, de 1740 a 1790, que sobreviveu de 1492 a 1898, e destruiu as civilizações inca, maia e asteca em busca de ouro e prata.

10 Apesar de perceber indícios globalizantes em todos os movimentos expansionistas, antes de esse fenômeno se desenhar como na metade do Século 20 e se consolidar neste início de milênio, os Séculos 14 a 18, com as grandes navegações (que precisaram de muita ciência e tecnologia), a tipografia de Gutenberg e as informações (comunicação) vindas de outras partes do mundo registraram o primeiro arremedo de uma verdadeira globalização.

11 Mas é hoje que a globalização nos envolve com toda sua intensidade. E ela está sustentada em quatro bases: capitalismo; ciência e tecnologia, sobretudo digital; transportes; e informação e comunicação.

12 Nada melhor do que procurar fontes adequadas para definições. A primeira é o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, edição de 2001:

Globalização

1. Ato ou efeito de globalizar.

2. Processo pelo qual a vida social e cultural nos diversos países do mundo é cada vez mais afetada por influências internacionais em razão de injunções políticas e econômicas.

2.1. Intercâmbio econômico e cultural entre diversos países, devido à informatização, ao desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte, à ação neocolonialista de empresas transnacionais e à pressão política no sentido da abdicação de medidas protecionistas.

2.2. Espécie de mercado financeiro mundial criado a partir da união dos mercados de diferentes países e da quebra das fronteiras entre esses mercados.

2.3. Integração cada vez maior das empresas transnacionais, num contexto mundial de livre comércio e de diminuição da presença do Estado, em que empresas podem operar simultaneamente em muitos países diferentes e explorar em vantagem própria as variações nas condições locais.

13 Vejamos agora o que nos diz o Dicionário da Globalização:

A globalização, processo considerado inelutável, em marcha em direção à «sociedade aberta» ou à «Grande Sociedade», segundo preferimos a expressão de Popper ou a de Hayek, tende – o que não se trata mais de uma descoberta – a invadir todos os espaços da vida social, econômica e política. Primeiramente, são os modelos de produção que se modificam. Observamos um deslocamento da atividade econômica, que facilita as transferências de uma parte das operações de trabalho de um país ao outro, contribuindo para a emergência de uma nova divisão internacional do trabalho. Os mercados de capitais desenvolvem-se, vinculados transversalmente às nações. Um fluxo livre de investimentos se produz sem levar em conta as fronteiras nacionais. Estas últimas revelam-se impotentes para represar os fluxos transnacionais de informação, para permitir a contenção dos riscos, para assegurar um controle absolutamente eficaz, mesmo por meio do direito.

Dicionário da Globalização; Org.: André-Jean Arnaud e Eliane Botelho Junqueira; <http://www.reds.msh-paris.fr/heberges/gedim/dico-globalisation.pdf>. Acesso em: 26 mar. 2012, 11:00.

14 É nesse processo que estamos inseridos. E não há como retroceder. Começamos a experimentar uma nova sociedade na qual tudo deve acontecer imediatamente e à nossa vista. No plano da comunicação global isto já acontece. Mas as mudanças comportamentais estão longe de acompanhar as mudanças tecnológicas. Muito menos em um mundo que criou realidades tão diferentes.

15 A partir de uma origem comum, construímos uma incrível diversidade de formas de vida, de pensamento, de sobrevivência. Cabe agora, a nós, harmonizar aquilo que o pensador francês Émile Durkheim chama de “contemporaneidade do não coetâneo”, ou seja, diferentes realidades humanas convivendo ao mesmo tempo no mesmo espaço planetário.

16 Nosso grande desafio é aceitar e respeitar a diferença e conviver com ela. O mundo globalizado ainda nos reserva grandes surpresas. Ele ainda é hostil, na sua voracidade capitalista, desenvolvendo práticas que remetem às antigas potências conquistadoras. Uma delas é o trabalho quase escravo. Outra é a destruição dos recursos naturais. E há ainda o uso da força para debelar protestos e impedir contestações.

17 Precisamos conhecer muito bem esse fenômeno que se foi estruturando desde os primeiros seres humanos, que já atingiu todo o planeta, mas que ainda favorece apenas a uma pequena parcela da humanidade. É bem verdade que ele vem acompanhado de uma importante palavra: sustentabilidade. As palavras sustentabilidade e globalização praticamente nasceram juntas, em meados do século passado. E é a sustentabilidade – com seu conceito de sobrevivência das gerações atuais e futuras – que pode corrigir muitos defeitos da globalização. Não todos.

18 Sustentabilidade é uma palavra da moda. Globalização é o fenômeno atual. A humanidade poderá se beneficiar melhor do progresso da ciência e da tecnologia se seguirmos à risca os preceitos do desenvolvimento sustentável, expostos no Relatório Brundtland:

Sustentável é o “[…] desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades; significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais”.

19 Ao mesmo tempo, precisamos estudar e acompanhar cuidadosamente esse fenômeno, a globalização, que chega com tanta força e promete se instalar para sempre. Certamente, algumas palavras precisam se incorporar à sustentabilidade: solidariedade, convivência harmônica, tolerância, respeito, honestidade, para que a mesma humanidade que conquistamos não nos leve a uma multiplicação de ações nefastas como costuma acontecer em países africanos, no Oriente Médio, e já aconteceu mais intensamente em regiões da Europa e dos Estados Unidos.

20 Precisamos de uma globalização que defenda, explicite e propague o bem e o reconhecimento e o respeito pelo outro. Este talvez seja o maior dos desafios da contemporaneidade para que possamos desenhar e aspirar a um futuro desejável.

* Fernando Rios é jornalista, publicitário, antropólogo, designer gráfico, consultor em comunicação organizacional integrada, poeta e artista plástico ([email protected]).